Saúde

Tecido humano "feito" em 3D pode revolucionar as terapias regenerativas

O stomp, nome do material, permite criar protótipos de órgãos e simular regiões com precisão inédita. Poderá ser utilizado em terapias regenerativas e em casos de doenças multicelulares, como as causadas por bactérias, fungos e vírus

MAIS LIDAS

Modelo simulando a ponta de um dedo e que mostra o avanço a ser utilizado em uma variedade de situações -  (crédito: Universidade de Washington)
Modelo simulando a ponta de um dedo e que mostra o avanço a ser utilizado em uma variedade de situações - (crédito: Universidade de Washington)
postado em 14/07/2025 05:00

Um novo instrumento desenvolvido por cientistas norte-americanos promete transformar as pesquisas em engenharia de tecidos e das terapias regenerativas. Criado por uma equipe multidisciplinar da Universidade de Washington e da Escola de Medicina afiliada, o sistema batizado de stomp (Padronização Microfluídica Aberta de Tecido Suspenso) surge como uma solução acessível e com elevado grau de adaptação, oferecendo nível de precisão até então inédito na simulação de tecidos humanos em laboratório. O estudo foi publicado na revista Advanced Science.

O stomp permite a organização seletiva de diversos tipos celulares em um mesmo suporte de hidrogel e possibilita a imitação de regiões biológicas complexas, algo fundamental para estudar distúrbios envolvendo múltiplos tecidos, como patologias neuromusculares.

A inovação se destaca por aprimorar um método conhecido como fundição de tecidos — processo que envolve a deposição de géis compostos por células e materiais sintéticos em moldes. Em vez de depender de recipientes fechados, a nova plataforma utiliza canais abertos que exploram a ação capilar para conduzir os elementos biológicos até posições definidas com exatidão. Com esse mecanismo, pesquisadores conseguem criar interfaces como as encontradas entre músculos e tendões ou entre áreas saudáveis e lesadas do miocárdio.

Segundo os idealizadores, essa versatilidade é comparável à precisão de um chef de cozinha ao organizar os ingredientes para uma sobremesa complexa. A estrutura física do stomp tem dimensões minúsculas — semelhante à extremidade de um dedo humano — e se encaixa em um sistema de dois pinos previamente criado para estudar contrações de tecidos cardíacos.

Colaborativa

A pesquisa envolveu cientistas das mais distintas áreas, como  Ashleigh Theberge, professora de química; e Nate Sniadecki, engenheiro mecânico e especialista em biomecânica. Ambos são coautores de estudos voltados à medicina regenerativa e lideraram os testes do novo equipamento.

As investigações foram conduzidas por doutorandas e pós-doutorandas, como Amanda Haack e Lauren Brown com apoio dos professores, como Cole DeForest, que contribuiu com uma inovação paralela: paredes degradáveis que facilitam a retirada do tecido formado, sem comprometer sua integridade. Já Tracy Popowics, pesquisadora de biologia bucal, participou dos testes envolvendo tecidos ligamentares que conectam dentes ao osso alveolar — um modelo útil para pesquisas odontológicas e de regeneração óssea.

Dois estudos de validação mostraram como o stomp consegue distinguir as diferenças entre amostras saudáveis e doentes. Em um deles, tecidos cardíacos com fibrose foram comparados com estruturas normais, revelando diferenças nas propriedades contráteis. Em outro experimento, foi recriado o microambiente do ligamento periodontal, indicando a aplicabilidade do dispositivo em odontologia regenerativa.

Além da capacidade de manipulação espacial, o projeto se destaca por sua função antiaderente, pois evita que células menos robustas percam a estrutura durante o cultivo, uma limitação comum em outras técnicas tridimensionais. Para Theberge, o impacto do novo sistema vai muito além dos estudos atuais. "Foi uma verdadeira colaboração interdisciplinar. Estamos apenas começando a explorar o que essa tecnologia pode oferecer à pesquisa biomédica", afirmou.

O trabalho recebeu apoio financeiro dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH), além de recursos de fundações voltadas ao estudo de distrofias musculares e parcerias com universidades como a de Wisconsin. Com o stomp, a engenharia de tecidos entra em uma nova fase, na qual a criação de modelos biológicos ricos em detalhes e multifuncionais se torna não apenas possível, mas também acessível a laboratórios em diferentes locais do mundo.

*Estagiária sob supervisão de Renata Giraldi

 


Uso prático e cotidiano

Os chamados biotecidos, feitos em laboratório como alternativas sustentáveis aos tecidos tradicionais, são utilizados principalmente em pesquisas e testes, sobretudo na saúde. O material pode substituir o uso de animais em experiências e aprimorar a avaliação de medicamentos, cosméticos e produtos de higiene pessoal. Há, ainda, a aplicação na pesquisa de doenças e no desenvolvimento de tratamentos para condições como úlceras e queimaduras.

Também podem ser utilizados para avaliar a eficácia e segurança de novas drogas, testando  reações adversas e efeitos crônicos que só seriam notados em etapas avançadas de pesquisas. Há estudos que mostram a aplicação em pesquisas sobre melanoma e câncer de colo do útero.  De acordo com especialistas, tecidos cultivados em laboratório são uma opção no tratamento de  úlceras dermatológicas crônicas e queimaduras, acelerando a cicatrização e promovendo a regeneração da pele.

Pesquisas comprovam a utilização do material para criar modelos de órgãos, como o fígado, que podem ser usados em estudos de toxicidade de medicamentos. A grande vantagem é que os  resultados mais próximos do que se passa em organismos vivos, o que pode levar a testes mais precisos e confiáveis. É possível ainda simular efeitos crônicos ou acumulados no longo prazo, já que é possível superdosar as substâncias in vitro. (RB)

Duas perguntas para Tatiana Sabaneeff, médica do Hospital Anchieta Ceilândia

Pela sua experiência, quais as vantagens na dermatologia do uso de biotecidos, inclusive esse protótipo em 3D?

Essa tecnologia traz agilidade, precisão e segurança. Produzir dispositivos personalizados de forma rápida e limpa impacta diretamente na qualidade do tratamento. Seja uma prótese facial, uma placa compressiva para cicatrizes ou um molde terapêutico, quanto mais cedo o paciente recebe o dispositivo ideal, melhor será a resposta clínica. Além disso, a fabricação limpa diminui o risco de contaminação, o que é fundamental em tratamentos prolongados. Isso representa uma revolução no cuidado com a pele: mais ciência, mais conforto e melhores resultados.

Será que esse modelo pode ser mais anatômico e até confortável, contribuindo para a adesão? 

Com certeza. Essa nova resina representa um salto em direção ao futuro da dermatologia. Ela permite a produção de dispositivos com acabamento delicado, altíssima precisão e excelente tolerância pela pele. Isso se traduz em mais conforto, estética aprimorada e maior adesão do paciente, afinal ninguém quer usar algo que machuca ou incomoda. Quando o dispositivo é bonito, anatômico e confortável, o paciente usa com orgulho. Isso é essencial, especialmente em tratamentos que exigem consistência para funcionar. (RB)

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação
x