Artigo

Carta para Jean-Claude

O que poucos sabem, e nós nunca deixaremos de esquecer, é que você foi um dos criadores do curso de cinema da UnB

 O cineasta estava internado no hospital Samaritano, em São Paulo, e sofreu um AVC -  (crédito:  Reprodução/Redes Sociais)
O cineasta estava internado no hospital Samaritano, em São Paulo, e sofreu um AVC - (crédito: Reprodução/Redes Sociais)

 » ROSE MAY CARNEIRO, Coordenadora do projeto Cine Pipoca no Rolê (@cine.pipocanorole), professora de audiovisual da Universidade de Brasília e coordenadora de Extensão da Faculdade de Comunicação da UnB

A notícia chegou como corte seco de cena. Você se foi. Brasília silenciou por dentro. Sabíamos que seu corpo já pedia repouso, que a luz se apagava devagar, ainda assim doeu. Não por surpresa, e sim pela dimensão da sua presença. Você ocupava o espaço com escuta atenta, com pensamento em movimento, com silêncio que nunca era omissão.

Escrevo por mim, pelos colegas do audiovisual da Universidade de Brasília e pela Faculdade de Comunicação da UnB (FAC/DAP). Por todos que foram atravessados por você, mesmo sem te conhecer de perto. Seu nome permanece entre nós como gesto, como método, como provocação. Você não gostava de respostas prontas. Preferia a dúvida bem colocada, o ruído no discurso, a pergunta que desestabiliza. Era um questionador por excelência, daqueles que a gente não esquece nem quando fecha o livro.

Nos conhecemos em 2018. Fui te buscar no hotel para uma conversa com a reitora da UnB. Eu estava nervosa, como se fosse encontrar um personagem de livro. Você entrou no carro com suavidade e logo se pôs a observar a cidade. Em voz baixa, mas firme, comentou sobre como certas estruturas de poder invisíveis influenciam as imagens que vemos e as histórias que contamos. Disse que estava mais do que na hora de virarmos a página ruim da nossa história audiovisual. Falou com a convicção de quem enxerga longe e ainda acredita.

O que poucos sabem, é que nós nunca nos deixaremos esquecer, é que você foi um dos criadores do curso de cinema da UnB. Estava ali, junto de Paulo Emílio Salles Gomes, quando a semente foi plantada. E que semente viva. Nosso cinema nasceu comprometido com o país, com o povo, com a dúvida e com o risco. Obrigada por isso. Por esse chão onde seguimos, filma, pensa e ensina.

Você ambém ajudou a fundar o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Criou um espaço que transformou a cidade num espelho de nós mesmos. E mais do que isso, criou um palco para que o cinema nacional ousasse. Sem você, talvez Brasília não fosse esse ponto de combustão entre estética e política.

Seus livros foram minha escola. Brasil em Tempo de Cinema, me rasgou. Cineastas e Imagens do Povo desmontou o olhar condescendente sobre o outro. O Autor no Cinema ensinou que toda assinatura carrega um corpo, um tempo, uma escolha. O voo dos anjos, com Bressane e Sganzerla, me acompanhou durante o mestrado. Foi minha bíblia de noites longas, de pesquisa em carne viva. Você estava em cada linha que doía e iluminava.

Na universidade, sua presença virou método. Aprendemos a desconfiar da neutralidade, da técnica vazia, da estética que evita conflito. Você nos mostrou que cinema bom incomoda. Que a margem também é centro. Que pensar exige coragem.

Sua homossexualidade nunca foi rodapé. Estava no olhar, no humor, na recusa a caber. Para quem também caminha por fora da norma, ver você ocupar espaços sem se dobrar foi abrigo e possibilidade.

E, então, no fim, você ainda surpreende. Resolve atuar. Aparece nos filmes com aquele corpo magro, expressão densa, silêncio cheio de passado. Falava pouco. Bastava estar. Até hoje me pergunto se naquele momento você foi, enfim, você mesmo, e a gente achou que era papel.

Seu velório no dia 13, às 13 horas, na Cinemateca. A data, o horário, o lugar. A semiótica piscou. A coincidência virou símbolo. A esquerda entendeu.

Você partiu no momento em que a cultura volta a respirar. A Lei Aldir Blanc segue viva, os editais reaparecem, os filmes voltam a circular. Você segurou o fio durante os anos de escuridão. Agora, entrega-nos a bobina.

Não me despeço. Você continua nas cenas que escolhem o risco, nos livros que ainda exigem releitura, nas perguntas que não se calam. O corte agora é nosso. A montagem, também. Com afeto, respeito e o compromisso de seguir com a imagem viva.

 

postado em 14/07/2025 06:01
x