Visão do Correio

País avança com uma negra na ABL

A chegada de Ana Maria Gonçalves à casa fundada por Machado de Assis é repleta de simbolismos. Em primeiro lugar porque a primeira imortal negra passa a integrar a instituição que perpetua o legado

Escritora Ana Maria Gonçalves  -  (crédito: Reprodução/Instagram )
Escritora Ana Maria Gonçalves - (crédito: Reprodução/Instagram )

Foram necessários praticamente 128 anos, a serem completados no próximo dia 20, para a Academia Brasileira de Letras abrir as portas para uma negra. Na última quinta-feira, a escritora Ana Maria Gonçalves ingressou no panteão da cultura nacional, em votação praticamente unânime. Obteve 30 dos 31 votos possíveis no sufrágio entre os imortais. A mineira nascida em Ibiá vai ocupar a cadeira de número 33, antes pertencente ao gramático e filólogo Evanildo Bechara, falecido em maio último.

A chegada de Ana Maria Gonçalves à casa fundada por Machado de Assis é repleta de simbolismos. Em primeiro lugar porque a primeira imortal negra passa a integrar a instituição que perpetua o legado do maior escritor do Brasil, apenas recentemente identificado como um autor afrodescendente. Trata-se de um avanço extraordinário em um país onde negros acumulam dificuldades históricas no acesso à educação e no reconhecimento de sua cultura.

A conquista da escritora também representa um marco porque reforça a presença feminina na cultura nacional. No dia da eleição, a nova integrante da ABL comentou a importância do momento. "É uma responsabilidade grande. Sou a 13ª mulher na Academia, que proibia nossa entrada até 1970. As mulheres precisam se candidatar mais. Que venham mais mulheres. É um dos papéis que gostaria de ensinar lá dentro, este caminho das pedras", afirmou.

Por último, Ana Maria Gonçalves imprime um traço de renovação na instituição mais tradicional da cultura brasileira. Aos 54 anos, a mais jovem imortal da Academia pretende alargar os horizontes da literatura no Brasil, no momento em que a leitura e a concentração estão cada vez mais escassas. "Minha eleição sinaliza a vontade da Academia de diversidade e que ela traga um outro público", sustenta a escritora, roteirista e dramaturga.

Em larga medida, o ingresso de Ana Maria Gonçalves na ABL é creditado à sua magistral obra Um defeito de cor, publicada em 2006. A trajetória da negra Kehinde, narrada em primeira pessoa, revela um retrato profundo do Brasil escravocrata, com um lirismo extraordinário. Com mais de 180 mil exemplares vendidos, o livro de 952 páginas está na 46ª edição. Em 2024, inspirou o enredo da escola de samba Portela no carnaval do Rio de Janeiro.

Em entrevista publicada na revista Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, em 2020, Ana Maria Gonçalves explicou por que decidiu mergulhar no universo de Um defeito de cor. Afirmou que o romance histórico é um registro de sua "construção de identidade como mulher negra". Filha de mãe negra e pai branco, revelou a motivação que a levou a escrever a monumental obra. "O meu livro foi a minha busca também, por construir uma identidade de uma história que me foi negada, a história dos negros no Brasil", contou a nova imortal.

Ao reconhecer o talento de Ana Maria Gonçalves, a ABL contribui para o Brasil ler as suas próprias raízes. Que venham mais capítulos.

 

postado em 13/07/2025 06:00
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