ARTIGO

Trump, tarifas e a armadilha da soberania

Ao invocar a soberania nacional diante do ataque trumpista, o governo brasileiro apela a um discurso potente — mas que pode ser perigoso se não vier acompanhado de uma leitura realista do tabuleiro geopolítico.

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big techs -  (crédito: Reprodução/Freepik)
tecnologia big techs - (crédito: Reprodução/Freepik)

DANIEL A. DE AZEVEDO, professor de geografia política da Universidade de Brasília (UnB)

"Brasileiros de todos os cantos, uni-vos!". A frase não veio oficialmente assim de Brasília, mas o tom nacionalista dominou o noticiário e as redes socais desde 10 de julho, quando o governo brasileiro foi surpreendido com a decisão de Donald Trump de elevar para 50% a tarifa sobre produtos importados do Brasil — um salto inesperado, já que, meses antes, o país havia recebido uma das menores taxas (10%) no pacote lançado pelo presidente americano. O que causou maior repercussão, no entanto, foi o tom abertamente político da justificativa: Trump acusou o Supremo Tribunal Federal (STF)  de perseguir "big techs" americanas e afirmou ser uma "caça às bruxas" o julgamento do seu aliado Jair Bolsonaro. Embora mencione argumentos econômicos, esses são frágeis — os Estados Unidos têm superavit com o Brasil, e a diferença nas tarifas (na média ponderada) entre os dois países é modesta (4,7% contra 1,3%).

A reação foi imediata e o discurso de soberania nacional o principal argumento utilizado em resposta a Trump. Apesar de decisões do governo americano sobre as tarifas de outros países também serem atravessadas por questões políticas, até o momento, nenhuma outra foi tão explicitamente realizada para influenciar decisões políticas internas. O debate da soberania estava posto: como reagir a uma óbvia invasão de prerrogativas do Estado brasileiro? O presidente Lula e tantos outros levantaram a voz, trazendo a carta da soberania e ameaçando com a tal Lei de Reciprocidade aprovada este ano. Eis aí o problema.

A geopolítica deve ser entendida não apenas como prática (o famoso "hard power", que conta com ações velhas, mas ainda muito constantes, como guerras, alianças e invasões), mas como discursos que fomentam representações e buscam construir consensos, seja em ambiente interno ou externo. O principal discurso de todos sempre foi a tal ideia de "soberania nacional". Governos de esquerda ou direita, democráticos ou autoritários, recorrem a ele em busca de legitimar ações e ativar sentimentos nacionalistas. É o que ocorre agora. Ao invocar a soberania nacional diante do ataque trumpista, o governo brasileiro apela a um discurso potente — mas que pode ser perigoso se não vier acompanhado de uma leitura realista do tabuleiro geopolítico.

Afinal, não há e nunca houve um país no mundo 100% soberano, como especialistas em geopolítica afirmam há décadas. Todos interferem, em maior ou menor grau, nas decisões de outros Estados, ao mesmo tempo em que reclamam de ingerências externas. Há um jogo permanente: condena-se o protecionismo alheio enquanto se subsidia a própria economia; repudia-se interferência em instituições nacionais ao mesmo tempo que se questiona julgamentos legítimos de parceiros ideológicos em países vizinhos; reclama-se de ataque à soberania territorial, enquanto invade e influencia quedas de governos alheios. Soma-se a isso o fato nada agradável que Estados hegemônicos têm poder desproporcional de definir a ordem geopolítica mundial, não sendo, portanto, um tabuleiro com peças simétricas. A ideia de "reciprocidade" — tal como evocada no debate atual — ignora essa assimetria.

Usar a retórica da soberania territorial e o instrumento da reciprocidade possui utilidade política e perigo geopolítico. A primeira se refere à potência do nacionalismo, isto é, há uma capacidade aglutinadora ao redor de um político que levanta a carta de ataque à soberania. Já o perigo é alimentar uma fantasia de simetria no jogo global, levando a população a crer que o Brasil tem o mesmo peso que EUA ou China. Essa ilusão pode gerar decisões diplomáticas desastrosas. Se, por um lado, ser subserviente não é o desejo de nenhum Estado, por outro, colocar-se virtualmente em uma posição geopolítica que não está, é um perigo demagógico para todos. A reciprocidade só funciona entre atores de força equivalente. Foi esse o erro, por exemplo, na decisão recente de retomar a exigência de visto para turistas americanos, canadenses e australianos — medida que ignorou a distinção entre turismo e migração e resultou mais de um impulso nacionalista do que de uma estratégia racional.

Não há dúvidas sobre o absurdo da decisão de Trump. Porém, alguém duvidaria de algo assim de um presidente que já demonstrou não ter nenhum apreço pelas instituições econômicas e políticas construídas nas últimas décadas? O que espanta é, nesse contexto de instabilidade marcado por um líder global sem nenhum tipo de previsibilidade, os representantes brasileiros agirem com o estômago, enviando mensagens de "não palpite sobre nossa vida" para o tal presidente sem controle.  Em tempos como este, o Brasil precisa de um Itamaraty que atue como instituição de Estado — e não apenas como braço de governo.  Mais do que nunca, é hora de agir com estratégia, prudência e realismo geopolítico.

 

Por Opinião
postado em 13/07/2025 06:04
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