ARTIGO

Ciência: farol ou retrovisor?

A ciência não pode seguir mirando com prioridade o espelho retrovisor. Precisamos preparar nossas instituições — e seus quadros — para uma ciência mais voltada à ação, à antecipação e à construção de futuros desejáveis

1307-FUTURO_OPINI_SITE -  (crédito: Maurenilson Freire)
1307-FUTURO_OPINI_SITE - (crédito: Maurenilson Freire)

MAURÍCIO ANTÔNIO LOPES, pesquisador da Embrapa Agroenergia

Vivemos um tempo em que o futuro deixou de ser uma continuação previsível do passado. Transformações tecnológicas, ambientais e sociais avançam em ritmo acelerado, rompendo padrões e desafiando certezas. Ainda assim, boa parte da ciência continua voltada a compreender o que já passou — analisando dados, contextos e políticas de outros tempos e, em muitos casos, com o olhar fixo no retrovisor.

A pandemia de covid-19 expôs de forma brutal essa limitação. Enquanto o vírus se espalhava rapidamente, causando milhões de mortes e colapsando sistemas de saúde, muitos governos e instituições hesitaram em agir por falta de "dados definitivos" sobre o que estava por vir. O resultado foram decisões tardias, com altíssimo custo humano, social e econômico.

A segurança alimentar também escancara esse paradoxo. Secas extremas, quebras de safra e crises econômicas interligadas têm provocado choques nos preços dos alimentos, ampliando a inflação, a pobreza e a fome em várias regiões. Em 2024, mais de 295 milhões de pessoas em 53 países enfrentaram níveis agudos de fome — um aumento de quase 14 milhões desde 2023, segundo a FAO. Mesmo diante de colheitas incertas e fenômenos extremos, ainda há quem negue as mudanças em curso — e seus impactos visíveis.

A boa notícia é que cresce no meio acadêmico e em círculos de pesquisa a percepção de que é preciso mudar a forma como a ciência enxerga o futuro. A pressão das crises recentes — pandemias, desastres climáticos, mudanças geopolíticas e rupturas tecnológicas — deixa claro que confiar apenas no passado e em projeções lineares não basta mais. A ciência precisa ampliar a capacidade de antecipar e testar caminhos alternativos, e lidar com incertezas e futuros possíveis.

Essa mudança de mentalidade já começa a surgir em estudos que questionam o excesso de foco da ciência em explicações do passado. Um exemplo é o artigo Causal Claims in Economics, dos economistas Prashant Garg e Thiemo Fetzer, que analisou 44 mil pesquisas em economia. Eles mostram que, nas últimas décadas, as publicações mais prestigiadas passaram a dar preferência a estudos que buscam provar o que causou o quê — ou seja, estabelecer relações de causa e efeito com base em dados do que já passou. O resultado é que as perguntas mais repetidas são aquelas que se encaixam nesses métodos, mesmo que nem sempre tragam ideias novas ou ajudem a pensar no futuro.

Esse processo faz com que trabalhos mais criativos — que exploram cenários futuros, testam hipóteses ousadas ou propõem novas formas de pensar — acabem ficando à margem das publicações mais prestigiadas. Isso tem levado a uma ciência cada vez mais eficiente em olhar para trás, mas que nem sempre se permite olhar para frente. E, embora o estudo trate da economia, essa tendência se repete em muitas outras áreas.

Saúde pública, educação, meio ambiente e tecnologia também sofrem com essa lógica de decisões baseadas apenas em dados consolidados do passado. Em todos esses campos, o tempo de espera por evidências definitivas muitas vezes não combina com a velocidade das transformações em curso. Insistir em agir apenas quando tudo já estiver comprovado pode significar perder janelas de oportunidade valiosas.

É claro que evidências sólidas são fundamentais. Mas a ciência não pode seguir mirando com prioridade o espelho retrovisor. Em tempos de mudanças aceleradas e incertezas crescentes, precisamos de faróis. E consolidar uma ciência voltada ao futuro demanda mais do que boa vontade e discursos inspiradores. É necessário investir em instituições capazes de lidar com o incerto e o inusitado.

A ciência precisa se guiar mais por nexos, que integrem alimento, saúde e nutrição; energia, clima e uso da terra; tecnologia, trabalho e desigualdade — realidades que não se ajustam a lógicas do passado, contidas em caixinhas disciplinares isoladas. Desafios assim exigem abordagens sistêmicas, equipes interdisciplinares e estruturas que conectem saberes, setores e escalas — com foco em futuros possíveis. Daí a pergunta inevitável: nossas organizações científicas estão preparadas para isso?

Renovar a ciência para o futuro também exige renovar as competências de quem a faz. Precisamos de mais profissionais com pensamento sistêmico, domínio em modelagem avançada, construção de cenários e análise integrada de impacto — além de ferramentas disruptivas como a inteligência artificial. Quantas organizações já se deram conta de que precisam renovar seus quadros, atraindo gente disposta a explorar incertezas e construir pontes entre conhecimento e decisão?

O fato é que precisamos preparar nossas instituições — e seus quadros — para uma ciência mais voltada à ação, à antecipação e à construção de futuros desejáveis. A ciência que olha para trás nos ajuda a entender como chegamos até aqui. Mas só uma ciência que também imagine o que ainda pode ser — e investigue como chegar lá — será capaz de nos conduzir a futuros mais resilientes e prósperos.

 

Por Opinião
postado em 13/07/2025 06:05
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