
ELIANE MARQUES, escritora e psicanalista
Em fevereiro deste ano, Mister Hugh — nome fictício — postou um vídeo no qual sou entrevistada por um veículo de comunicação acerca da importância da atividade física para pessoas racizadas. Na ocasião, eu participava de uma maratona organizada pelo coletivo Corre Preto. No vídeo, em tom agressivo, ele diz, aos gritos, que "nem me conhece" e que meu modo de falar parecia o de "uma cabra indo para o abate num terreiro de macumba". Muitos dos seus milhares de seguidores fizeram piadas e o parabenizaram pela lucidez em face de meu mimimi.
Em 25 de junho, sob o fundamento de que evidencia ofensa pura e simples, capaz de atingir a dignidade, o juiz titular da 2ª Vara Cível de Porto Alegre concedeu-me tutela de urgência para que o Facebook e Mister Hugh retirassem a postagem.
Das outras vezes em que recebi ataques, respondi diretamente ou ignorei. Mas, dessa vez, não foi o caso. Nas primeiras semanas, envergonhada, eu me escondi; não saí de casa, não pude olhar para as pessoas nem entregar trabalhos. Eu tinha a certeza paranoica de que riam ao enxergar em mim a cabra anunciada. Se eu fosse branca, homem e supostamente cristã, as palavras cabra e macumba, mastigadas com um prazer quase pornográfico por Hugh e sua audiência, não teriam sido cuspidas com tanta facilidade sobre minha pele.
Ele também é racizado, embora não esteja na minha pele. A discursividade que forja, no citado vídeo, evidencia a tese de que o "eu" se distingue do outro, rejeitando-o e o tomando hostil e, por conseguinte, odiando-o. Em sentido estrito, amor não se opõe ao ódio. Pelo contrário, em conjunto, como se fossem unha e carne, opõem-se à indiferença, estágio originário do "eu". Nesse tempo de formação, todo prazeroso — amado — é vivido como "eu". De outro lado, todo doloroso é vivido como outro, por isso hostilizado e odiado.
Contudo, desde a modernidade o "eu" se faz racizado (raça social tomada como "defeito de cor"). Ao "eu" se junta à palavra raça, que o transforma em "Eu-pele". Cabra e macumba, no contexto em que aparecem, remetem à constante fabricação e renovação discursiva do Eu-pele pelo processo de bestialização das mulheres negras. Trata-se de um movimento sociopolítico que aproxima, quem faz uso de tais predicativos, da iluminada família europeia — a lucidez não está aí gratuitamente — e o distancia de uma África imaginária, berço familiar da acusada de ser uma besta.
Isso tudo em face de que o "Eu-pele" estabelece com o outro uma familiaridade racial imaginária, ainda que contra sua vontade consciente. Tal familiaridade, quando se trata de segmentos racizados, dispara o sentimento de alguma forma de amor ou faz retornar aquele ódio constitutivo do "eu". No caso que compartilho com vocês, o sentimento despertado foi o último, expresso diretamente como agressão socialmente compartilhada. Em outras situações, o ódio pode assumir a forma contida, manifestada num mal-estar pessoal e social do qual disfarçamos a origem.
A adoção de um ponto de diferença isolado, a voz de cabra, e os gritos de "eu nem te conheço", constituem os termos que buscam interromper a relação de familiaridade racial que o "Eu-pele" de Mister Hugh busca denegar. Geralmente, a discursividade de que se fala não faz outra coisa senão restituir a binaridade histórica entre a bestializada e o civilizado, colono e colonizado, Europa e aquilo que ela e sua linhagem instauraram como "cabra".
Mas, parafraseando Lélia González, agora, é tarde, transposta a melancolia inicial, a cabra continuará falando. No ato de denegar, ouvimos em Hugh a fala de um racial primeiro, aquele que funda a modernidade a partir da escravização e do processo de enegrecimento que a condensa e a desloca, não para romper, mas para manter o outro no mesmo. O racial primeiro permanece como resíduo do qual o sujeito não sabe nem quer saber, mantendo-se como um pingo de menga (sangue em quimbundo) no terno inglês, comprado de um alfaiate da Rua das Lavadeiras. O terno será usado por Mister Hugh na festa de casamento com a branquitude, a fim de continuar servindo melhor, agora como "se fosse da família".
Mas resíduo do quê? Na dimensão inconsciente, são os resíduos de uma história racial e do racismo de cada um/uma, efeitos de uma narrativa sociopolítica que reiteradamente volta a se inscrever e receber aplausos. Por fim, desconfio que Mister Hugh mantenha um vínculo totêmico com as cabras. Mas falarei disso em outro artigo.
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