Artigo

Pepe Mujica, o jardineiro da utopia latino-americana

A vida, a obra e a história de Pepe são sementes lançadas em solo vilipendiado: trata-se de um convite à simplicidade, à resistência e à esperança

Uruguay's President Jose Mujica listens to a journalist question after signing agreements with his Bolivian counterpart Evo Morales (out of frame) in Montevideo on February 26, 2015, two days before newly elected leftist president Tabare Vazquez assumes office, succeeding Mujica. AFP PHOTO / Pablo PORCIUNCULA -  (crédito: PABLO PORCIUNCULA)
Uruguay's President Jose Mujica listens to a journalist question after signing agreements with his Bolivian counterpart Evo Morales (out of frame) in Montevideo on February 26, 2015, two days before newly elected leftist president Tabare Vazquez assumes office, succeeding Mujica. AFP PHOTO / Pablo PORCIUNCULA - (crédito: PABLO PORCIUNCULA)

Gustavo Menon docente de relações internacionais na Universidade Católica de Brasília e no Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP

 

Poucos líderes e chefes de Estado encarnaram com tanta fidelidade o que professavam quanto José Pepe Mujica. O ex-presidente da República Oriental do Uruguai deixa um legado profundo, marcado pela ética, coerência e compromisso inabalável com a justiça social e a transformação política.

Desde sua juventude, Mujica foi protagonista das lutas de seu tempo. Como fundador do Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros, enfrentou a ditadura militar uruguaia, pagando um preço altíssimo que apenas pessoas revolucionárias podem suportar: mais de 10 anos de prisão, tortura e isolamento extremo, experiências que moldaram seu caráter e sua visão de mundo. Libertado com o movimento de anistia de 1985, tornou-se símbolo da redemocratização uruguaia e da capacidade de superação e de diálogo entre as esquerdas latino-americanas.

No governo, Mujica se destacou por sua vida austera e por rejeitar os privilégios do cargo: morava em uma chácara simples, dirigia seu fusca azul e doava a maior parte do salário a causas sociais. Sua postura, incomum entre chefes de Estado, tornou-se referência global de integridade e desapego material. Como presidente (2010-2015), liderou reformas progressistas históricas, como a descriminalização do uso maconha, a aprovação da união homoafetiva, e colocou o Uruguai na vanguarda dos direitos civis e das políticas sociais. Sob seu governo, o país avançou no combate à pobreza, na ampliação do acesso à saúde e à educação e consolidou-se como uma das democracias mais sólidas do continente.

Mujica foi também voz ativa em defesa da integração latino-americana e do papel do Sul Global na reconfiguração das estruturas de poder internacional. Suas críticas ao consumismo, à desigualdade e à lógica neoliberal ecoaram em fóruns mundiais, inspirando movimentos sociais e lideranças progressistas em todo o mundo. Em sua autocrítica, reconhecia os limites da política, mas insistia na necessidade de sonhar com uma humanidade mais solidária e reconectada com o espírito da fraternidade.

Para as esquerdas latino-americanas, Mujica deixa o exemplo de uma política feita com honestidade, autocrítica e proximidade com o povo. Defendeu que a esquerda precisa se renovar, dialogar com as mudanças do tempo e manter viva a esperança de um mundo mais justo, pautado por uma ética do bem-viver. Nos seus últimos projetos, propôs a criação do Dia da Amazônia para toda a América do Sul.

Ao mesmo tempo, em sua trajetória nos ensinou que a verdadeira força política está na capacidade de resistir, de transformar a dor em resistência e de manter a coerência mesmo diante de derrotas e adversidades.

Em uma de suas passagens pela Assembleia Geral das Nações Unidas, Mujica declarou: "Temos sacrificado os velhos deuses imateriais e ocupamos o templo com o deus mercado. Ele organiza a economia, a política, os hábitos, a vida e até mesmo nos financia, em parcelas e cartões, a aparência de felicidade. Parece que nascemos só para consumir e consumir e, quando não podemos, há a frustração, a pobreza e a autoexclusão".

A crítica de Mujica sempre recaiu sobre a dinâmica do modo de produção capitalista e seu modelo civilizatório, destacando o caráter exploratório das relações de poder contemporâneas e os efeitos perversos de desumanização.

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Em um tempo marcado por diferentes conflagrações, guerras, a ascensão de projetos de extrema-direita e disputas comerciais que afetam as relações internacionais, é importante ressaltar que Pepe Mujica foi um símbolo da luta revolucionária latino-americana. Sua trajetória inspira gerações por sua coragem, coerência e compromisso com a justiça social e com a construção de um mundo em que se faz necessário radicalizar valores plenamente democráticos.

A vida, a obra e a história de Pepe são sementes lançadas em solo vilipendiado: trata-se de um convite à simplicidade, à resistência e à esperança. Mujica foi, e seguirá sendo, o jardineiro da utopia latino-americana.

 

Por Opinião
postado em 14/05/2025 06:00
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