Artigo

O desafio do desodorante e o chamado por um pacto coletivo

A morte de Sarah não é um caso isolado, mas o sintoma de uma cultura que comercializa a infância, transforma brincadeira em risco, tempo em dado, curiosidade em mercadoria

Desafio desodorante -  (crédito: Caio Gomez)
Desafio desodorante - (crédito: Caio Gomez)

Suelen Valenteprofessora da Faculdade de Comunicação da UnB (FAC-UnB), pesquisadora do projeto Letramento Transmídia, Práticas Comunicacionais e as Realidades Brasileiras. Renata Othon e Carina Flexor professoras da FAC-UnB. Respectivamente, pesquisadora e coordenadora do projeto Letramento Transmídia, Práticas Comunicacionais e as Realidades Brasileiras 

Somos docentes do campo da comunicação, com acesso às discussões mais atuais sobre as mídias digitais e seus impactos sobre o tecido social. Entretanto, antes da dedicação ao ensino, à pesquisa e à extensão universitária, nos empenhamos ao árduo — e prazeroso — ofício de sermos mães. Mães que observam com atenção, e, muitas vezes, com angústia, as transformações que atravessam as infâncias em tempos de telas.

Investigamos os efeitos das plataformas mediadas por algoritmos e as lógicas da economia da atenção que, notadamente, têm fisgado todos nós — inclusive as nossas crianças. Entretanto, nossas vivências mais profundas nascem do chão da sala de nossas casas, do parquinho e das conversas antes de dormir. É desse lugar duplo — da ciência e do cuidado — que partimos para refletir sobre os modos de brincar que emergem em um mundo mediado pelas tecnologias.

O isolamento social decorrente da pandemia mergulhou as crianças nas telas, forçando-as a reinventar brincadeiras e modos de socialização. Sentimos ali que brincar salva. É por meio da brincadeira que a criança experimenta, elabora, cria vínculos; é brincando que ela desenvolve sua relação com os outros e consigo mesma, que se constrói como sujeito e se vê pertencer.

Mas o que acontece quando a brincadeira se desloca para uma "praça pública digital"? Foi dentro de casa, em um ambiente aparentemente seguro, que a pequena Sarah Raissa Pereira de Castro, de apenas 8 anos, participou de um "desafio" que circulava nas mídias sociais. Uma simples brincadeira, ao que parecia: inalar um desodorante, que levou a um desfecho, infelizmente, trágico.

O que esse novo "brincar" revela sobre os riscos que as crianças enfrentam em um ambiente que premia o engajamento a qualquer custo? As mídias digitais transformaram o modo como as crianças brincam, interagem e aprendem — e exigem dos adultos um novo repertório para acompanhar, compreender e proteger. Mas é preciso reconhecer: nenhuma família será capaz de enfrentar sozinha as engrenagens de um sistema que opera com base na captura da atenção e na monetização de dados.

Em campanha recente, a operadora Vivo, ao comparar o uso excessivo do celular a um relacionamento abusivo, toca numa ferida coletiva: trocamos o espelho pelo filtro, as conversas pelo scroll infinito, as histórias pessoais pelos stories. Ainda que campanhas como essa sirvam à estratégias de posicionamento de marca, elas apontam para uma mudança relevante: a responsabilidade por garantir o uso seguro da tecnologia é coletiva.

É nesse contexto que precisamos firmar o nosso pacto. Como sociedade, devemos pensar em estratégias coletivas para promover a proteção, a provisão e a participação das crianças. Certamente, um problema com essa complexidade, em um país marcado por realidades distintas, exige soluções igualmente complexas, cujos esforços devem partir das famílias e cuidadores, das instituições de ensino, do Estado, da sociedade civil e, principalmente, das plataformas digitais. 

A morte de Sarah não é um caso isolado, mas o sintoma de uma cultura que comercializa a infância, transforma brincadeira em risco, tempo em dado, curiosidade em mercadoria. A urgência de educar para o uso crítico das mídias digitais não é só uma pauta pedagógica: é um imperativo ético e social.

https://www.correiobraziliense.com.br/webstories/2025/04/7121170-canal-do-correio-braziliense-no-whatsapp.html  

Nesse cenário, o Guia Crianças, adolescentes e telas: guia sobre usos de dispositivos digitais, lançado pelo governo federal este ano, surge como uma ferramenta potente, oferecendo estratégias tangíveis para equilibrar o uso das telas e reduzir os riscos. Mas o caminho ainda é longo, e há muito a se fazer, sobretudo para que informações e ações de uma educação voltada para as mídias alcancem as distintas infâncias deste país. Os esforços se somam, mas como competir com as engrenagens algorítmicas e os modelos de negócio das plataformas que lucram com a permanência das nossas crianças diante das telas? 

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Quando uma brincadeira vira tragédia, revela-se o reflexo de um sistema que tem falhado em proteger as crianças. E nós, como mães, nos solidarizamos profundamente com a família de Sarah Raissa e com todas aquelas que carregam dores semelhantes, irreparáveis. Como pesquisadoras e educadoras, também nos responsabilizamos por transformar essa dor em mobilização, assumindo o compromisso de buscar caminhos que tornem as infâncias mais seguras. Mas essa tarefa não é só nossa, lembrem-se: deve ser um pacto coletivo. Por Sarah Raissa e por todas as crianças que precisamos proteger.

 

Por Opinião
postado em 14/05/2025 06:00
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