
Por Marcelo Queiroga*
Em 2024, o Brasil celebrou um feito histórico: a divulgação da menor razão de mortalidade materna (RMM) desde o início da série histórica em 2002. Segundo dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM/DataSUS), foram 54,5 óbitos maternos por 100 mil nascidos vivos em 2022 — um marco em mais de duas décadas de monitoramento. Para efeito de comparação, em 2002 o índice era de 65,5, e, durante os anos seguintes, oscilou em níveis ainda superiores, agravando-se dramaticamente com a pandemia de covid-19.
O resultado de 2022 é ainda mais expressivo por suceder o momento mais crítico da pandemia, quando gestantes e puérperas estiveram entre os grupos mais afetados, com mais de 1.500 óbitos maternos relacionados à covid-19 apenas em 2021. Superar esse cenário e alcançar um patamar inédito de redução da mortalidade materna exigiu uma resposta técnica consistente e coordenada.
Essa resposta veio por meio de um conjunto articulado de ações do Ministério da Saúde durante a gestão do presidente Jair Bolsonaro, especialmente a partir de 2021. A pasta priorizou a saúde materna como eixo estratégico, incorporando gestantes no grupo prioritário da vacinação contra a covid-19 e elaborando protocolos clínicos específicos em parceria com sociedades científicas.
Foram produzidos e atualizados dezenas de documentos técnicos — como o Manual de Gestação de Alto Risco, o protocolo de Cuidados Obstétricos na Diabetes Gestacional e novas versões das cadernetas da gestante e da criança. Essas publicações, muitas vezes, invisíveis ao público, garantiram segurança e padronização no cuidado prestado por profissionais de saúde em todo o território nacional.
Outro pilar dessa conquista foi a criação da Rede de Atenção Materno Infantil (RAMI), consolidada como uma evolução da Rede Cegonha. A Rami valorizou a prática clínica baseada em evidências, integrando especialistas de diversas áreas e promovendo linhas de cuidado estruturadas para reduzir mortes evitáveis. Diferente de programas anteriores, a Rdmi apostou na vigilância ativa, regionalização dos serviços e efetiva articulação com a atenção primária.
Apesar do avanço, persistem desigualdades regionais. Em 2022, Curitiba (PR) registrou uma RMM de 16,3, enquanto Boa Vista (RR) alcançou 165,8. Essa disparidade evidencia que o caminho da equidade ainda precisa ser percorrido. Mas também prova que, onde há gestão técnica, compromisso político e valorização da ciência, é possível salvar vidas — mesmo em um ambiente adverso como o pós-pandemia.
Reduzir a mortalidade materna não é apenas uma meta estatística: é um compromisso civilizatório. Cada vida perdida representa uma falha do sistema e uma dor irreparável para famílias e comunidades. O resultado de 2022 não é fruto do acaso: é o reflexo de decisões acertadas, do empenho de servidores públicos e da atuação de um ministério que fez da ciência sua principal diretriz.
Apesar dos avanços alcançados, causa preocupação a decisão da então ministra da Saúde Nísia Trindade de revogar a RAMI sem apresentar, até o fim de sua gestão, um programa público equivalente que substituísse sua função estratégica. A RAMI havia se consolidado como uma política técnica robusta, com foco na redução de mortes evitáveis e no fortalecimento das linhas de cuidado materno-infantil. Sua extinção representou um retrocesso institucional e colocou em risco a continuidade das ações que contribuíram para a histórica redução da mortalidade materna em 2022.
Ao mesmo tempo, a gestão de Nísia Trindade pareceu concentrar esforços políticos em temas polêmicos e de forte repercussão ideológica, como a tentativa de regulamentar a interrupção de gestações nos casos já previstos em lei — especialmente em situações de estupro — até as imediações, do termo gestacional. Essa priorização contrastou com a ausência de um programa público equivalente que substituísse a Rami, sinalizando uma inversão preocupante de foco: menos atenção à prevenção da mortalidade materna e mais ênfase em disputas simbólicas. Em um país ainda marcado por desigualdades no acesso ao parto seguro, a ausência de uma política estruturante compromete a continuidade dos avanços obtidos.
Cuidar das mães é, sim, responsabilidade de todos. Mas é dever irrenunciável do Estado garantir que nenhuma mulher morra por causas evitáveis no momento em que gera a vida. Que esse legado permaneça — e que a saúde materna continue sendo prioridade nas políticas públicas do Brasil.
Marcelo Queiroga é médico cardiologista e ex-ministro da Saúde do Brasil