
Era uma sexta-feira quente em Brasília em novembro de 2004 e o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recebia no país o agora ex-presidente da China, Hu Jintao. Lula estava em seu segundo ano de governo e, naquele momento, o país anunciou uma medida controversa: reconheceu o país asiático como uma economia de mercado.
O episódio, ocorrido há mais de duas décadas, foi lembrado por Lula na segunda-feira (12/5), durante um evento com empresários chineses e brasileiros em Pequim que faz parte da agenda de sua visita oficial à China. A segunda apenas neste mandato.
"Não me arrependo", disse Lula nesta semana.
O anúncio em 2004 não era apenas um gesto diplomático. À época, a China ainda era criticada por parte da comunidade internacional por usar práticas anti-mercado para exportar seus produtos a preços baixos.
Reconhecer a China como uma economia de mercado era uma espécie de "selo" de que o país se submeteria às regras internacionais do comércio global.
Naquela tarde, Lula aparentava estar contente e arriscou uma previsão.
"Nosso comércio, que hoje chega a US$ 8 bilhões por ano, pode mais do que duplicar nos próximos cinco anos", disse Lula.
O tempo provaria que Lula subestimava o que estava por vir.
Nos cinco anos que se seguiram, o fluxo comercial (exportações mais importações) entre os dois países mais que triplicou.
Saiu de US$ 9,1 bilhões ao final de 2004 para US$ 35 bilhões em 2009. Naquele ano, a China ultrapassou os Estados Unidos como principal comprador de produtos brasileiros.
Impulsionada pelo apetite por commodities agrícolas, minerais e petróleo, a China se consolidou como principal parceiro comercial do Brasil e, em 2024, ela foi responsável por receber 28% de todas as exportações brasileiras. Em 2023, esse percentual chegou a 30%.
Os Estados Unidos, segundo maior comprador, ficou com pouco mais de 12% no ano passado. Sozinha, a China comprou mais produtos brasileiros que a soma dos seis outros maiores importadores, grupo que inclui, além dos Estados Unidos, a Argentina, Países Baixos, Espanha, Singapura, e México.
Entre 2004 e 2024, o saldo da balança comercial entre Brasil e China foi amplamente favorável (US$ 315 bilhões) e ajudou o país a compor suas reservas internacionais.
A visita de Lula à China e as crescentes tensões entre o país e os Estados Unidos jogaram sobre como fica o Brasil em meio a tudo isso.
Com a China responsável por quase um terço de tudo o que o Brasil exporta para o mundo, é possível dizer que o Brasil é dependente da China? E quais os riscos para essa suposta dependência?
Diplomatas e especialistas em relações internacionais e comércio exterior ouvidos pela BBC News Brasil se dividem sobre o grau dessa dependência. Alguns afirmam que o Brasil está perigosamente dependente do gigante asiático, enquanto outros avaliam que o que existe é uma relação de dependência mútua.
Todos, no entanto, concordam que, qualquer que seja o termo para definir o atual estado das relações entre os dois países, o Brasil está vulnerável a um eventual choque na economia chinesa e que isso poderia ter impactos negativos na economia brasileira.

Nascidos um para o outro?
O ex-ministro das Relações Exteriores e atual assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, embaixador Celso Amorim, demonstra preocupação com a intensidade do vínculo entre o Brasil e a China. Apesar de ser um entusiasta da parceria, ele aponta ressalvas.
"Não queremos depender de um único país. Tenho grande simpatia pela China, temos uma relação muito boa [...] Mas não queremos depender só da China. Nem é bom para a China", disse Amorim em entrevista à BBC News Brasil, em abril.
Na avaliação do presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, não há outra forma para definir a relação que o Brasil mantém com a China.
"Nós somos muito dependentes da China e, a cada dia que passa, ela ocupa mais espaço nas exportações do Brasil", diz Castro à BBC News Brasil.
De fato, os dados mostram uma ligação muito intensa entre as economias do Brasil e da China.
Em 2009, quando China virou o principal parceiro comercial brasileiro, o país asiático era responsável por 13,2% das exportações brasileiras, percentual que foi aumentando ano a ano até chegar aos atuais 28%.
Segundo levantamento feito pela BBC News Brasil com dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), a China é o principal destino das exportações de 14 das 27 unidades da federação (veja o gráfico). Os Estados Unidos lideram o ranking de exportações em cinco Estados.
O cientista político e professor de Relações Internacionais do Centro de Estudos Políticos-Estratégicos da Marinha do Brasil, Maurício Santoro, usa outro termo para definir as relações entre a China e Brasil.
"Ela (relação) é, no mínimo, assimétrica. O Brasil depende muito mais da China do que a China depende do Brasil. Eu diria que ela é uma relação de dependência para alguns setores da economia brasileira, para o agronegócio ou para uma empresa como a Vale, por causa das exportações de minério de ferro [...] Para a economia brasileira como um todo, não tanto", diz Santoro à BBC News Brasil.
Lívio Ribeiro, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), também evita usar o termo dependência.
"Não vamos chamar de dependência porque dependência tem uma conotação ruim, [...] comércio é uma relação bilateral. As pessoas trocam e as pessoas comercializam porque ambos os lados têm ganhos na comercialização", diz Ribeiro à BBC News Brasil.
Ele compara a situação do Brasil em relação à China com a do México ante os Estados Unidos. Ele argumenta que 80% do comércio mexicano está vinculado à economia norte-americana, enquanto no Brasil, esse percentual gira em torno de 30%.
"A gente tem uma complementaridade muito grande entre o que a China consome e o que o Brasil produz e entre o que o Brasil precisa importar e o que a China exporta. Brasil e China são parceiros complementares como poucos países são [...] a gente meio que nasceu um para o outro", complementa o pesquisador.
O ex-secretário de Comércio Exterior do governo brasileiro e consultor Welber Barral faz uma avaliação semelhante. Ele também evita classificar o Brasil como dependente da China, mas reconhece que a balança comercial brasileira depende dos dólares vindos das exportações de commodities à China.
"É esse superávit que dá segurança à balança comercial [...] que equilibra a balança de pagamentos brasileira e isso permite uma cotação do dólar mais estável [...] isso permite o controle da inflação e, inclusive, segurança das nossas reservas internacionais", diz Barral à BBC News Brasil.
Por outro lado, ele avalia que a China também depende, em certa medida, do Brasil.
"A China tem um consumo muito grande de soja. Hoje, ela compra do Brasil, da Argentina e dos Estados Unidos. Sendo que o Brasil é o maior produtor mundial. Para alguns produtos, a China não tem tanta alternativa", diz Barral à BBC News Brasil.
Os dados da balança comercial mostram que 75% de tudo o que o Brasil exportou para a China em 2024 foi composto por soja, minério de ferro e petróleo.
Por outro lado, a China se destaca pela exportação de produtos manufaturados ao Brasil, especialmente aqueles com alta tecnologia embarcada. Dos US$ 63 bilhões, a maior parte é composta por produtos com alta tecnologia embarcada como US$ 2,4 bilhões em painéis solares e US$ 1,4 bilhão em carros híbridos ou elétricos.
José Augusto de Castro, da AEB, diz concordar que a China também dependa do Brasil para suprir suas necessidades de commodities. Mas ele reitera que, na sua opinião, o que existe em relação à China é um tipo perigoso de dependência.
"Hoje, a dependência que o Brasil tem da China é porque você não consegue, de uma hora para a outra, criar um novo mercado que permita a você exportar um certo produto sem fazer muita alteração interna no Brasil", diz Castro.
Os riscos da concentração de ovos
Independente da forma como essa relação é classificada, os especialistas avaliam que há riscos no fato de o Brasil confiar tanto nas exportações para a China.
"Quando você exporta para um único parceiro, você corre o risco de que, se houver uma crise econômica naquele país, a sua economia vai ser muito afetada. Isso hoje (acontece) não só no Brasil. Boa parte dos países sul-americanos já tem a China como principal parceiro comercial", diz Welber Barral.
Um exemplo dado por Barral foi o estouro da bolha do setor imobiliário do país, a partir de 2022, que afetou a compra de minério de ferro do Brasil.
Barral elenca outro risco.
"O segundo problema é quando você tem muita dependência de commodities, porque você não controla o preço. Se há uma queda de preços do mercado internacional, a sua balança comercial é muito afetada", diz Barral.
"Se não tiver o mercado chinês, o que fazer com tanta soja?", indaga o presidente da Associação Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja), Maurício Buffon, à BBC News Brasil.
Buffon é produtor rural em Tocantins. De origem sulista, ele produz soja em suas propriedades.
Seu Estado, segundo dados oficiais, é um dos que tem a China como principal comprador de seus produtos. Em 2024, 47% de tudo o que Tocantins exportou foi comprado pelo país asiático.
Ele também avalia que a relação com a China seria de reciprocidade.
"É uma dependência mútua. Nós dependemos deles para vender e eles dependem do nosso produto para a alimentação [...] Eles também precisam de soja e não teriam onde buscar (a soja) em outro lugar do mundo. Até mesmo os Estados Unidos não teriam soja para atender a demanda da região", afirma.
Apesar disso, ele reconhece que uma desaceleração na economia chinesa ou uma queda brusca no preço das commodities agrícolas teriam impactos na economia do agro e, por consequência, do restante do país.
"Se eles pararem de comprar, haveria uma grande oferta no mercado e aí teríamos um grande problema de desemprego em toda essa cadeia. Ela ficaria desestruturada", projeta.
Esse cenário, na prática, já aconteceu. Ao menos, em termos. Entre os anos 2012 e 2015, a desaceleração do ritmo do crescimento da economia chinesa fez despencar os preços das commodities e afetou a economia brasileira.
Buffon diz que um outro risco no horizonte é o de outras partes do mundo como a África começaram a produzir as commodities agrícolas que o Brasil vende. Geograficamente, o continente africano é mais perto da China, o que poderia comprometer a competitividade dos produtos brasileiros.
Apesar disso, ele diz que os produtos agrícolas brasileiros não estariam preocupados com essa hipótese.
"Já faz mais de dez anos que se fala sobre isso, mas houve pouca evolução. Há muitas guerras e conflitos internos na África. Então, isso é uma coisa que o produtor brasileiro não enxerga como uma ameaça a curto prazo", afirma Buffon.
José Augusto Barros, no entanto, enxerga um outro problema na concentração do comércio brasileiro com a China. Segundo ele, a dinâmica existente criaria incentivos para que o Brasil exporte, cada vez menos, produtos manufaturados, que são aqueles que requerem mais mão de obra ou mão de obra mais qualificada.
A consequência disso seria a desindustrialização do país e a ampliação da dependência sobre as exportações de produtos com baixo valor agregado.
"A China importa commodities e exporta manufaturados. Nós importamos manufaturados e exportamos commodities [...] Nós importamos desemprego e exportamos empregos", resume Barros.
O cenário, ele ressalta, é diferente do que acontece com os Estados Unidos ou outros parceiros como a Argentina. Segundo ele, a pauta de exportações para esses dois países é, primordialmente composta por produtos manufaturados.

Diversificação: de parceiros e de produtos
Mas se o Brasil produz o que a China quer comprar e a China quer comprar o que o Brasil produz, o que fazer para evitar que o Brasil se coloque em uma situação vulnerável?
Para Welber Barral, a saída é diversificar. Parceiros e pauta exportadora.
"O grande desafio do Brasil em relação ao mercado chinês é justamente diversificar as suas exportações, que hoje estão muito concentradas em commodities, minerais e commodities vegetais", diz.
Durante entrevista na semana passada, o secretário para as regiões de Ásia e Pacífico do Ministério das Relações Exteriores, Eduardo Saboia, disse que uma das prioridades do governo brasileiro é mudar parte da pauta exportadora do Brasil para a China.
"O que nós queremos é diversificar a nossa relação e a nossa pauta exportadora para a China. (Queremos) diversificar os investimentos e as parcerias com a China, procurando atraí-la para esse projeto de industrialização, de capacitação tecnológica, de transição energética", disse.
O diplomata disse ainda que o país vem fazendo esforços para ampliar mercados para os produtos brasileiros.
"O que nós fazemos com a China, nós fazemos com outros países. O presidente, por exemplo, foi ao Vietnã (em abril). O Sudeste Asiático é nosso terceiro parceiro comercial, enquanto bloco. É uma região que cresceu muito [...] em junho, o presidente vai à França", disse Saboia.
O pesquisador Maurício Santoro diz ter uma avaliação semelhante à do diplomata.
"Existe, por parte dos diplomatas brasileiros e de alguns setores do governo, uma certa preocupação em se tornar excessivamente dependente da China. O Brasil quer diversificar mercados e quer também aumentar suas exportações para outras regiões do mundo. E isso tem acontecido [...] Mas não é tão fácil colocar esse objetivo em prática", diz Santoro.
Ele cita como exemplo as tentativas do Brasil e do Mercosul de finalizarem o acordo de livre comércio entre o bloco sul-americano e a União Europeia.
Em dezembro do ano passado, os dois blocos econômicos anunciaram a conclusão do acordo, uma das etapas formais que antecedem a sua entrada a vigor. O acordo se arrastou, no entanto, por mais de 20 anos até chegar a essa fase.
A expectativa é de que sua entrada em vigor leve, pelo menos, mais alguns meses, embora o governo brasileiro defenda que os trâmites burocráticos para que isso aconteça sejam acelerados, especialmente em meio à guerra tarifária iniciada pelo governo do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Lívio Ribeiro aponta, ainda, que diversificar parceiros e a pauta exportadora pode ser positiva, mas haveria custos que precisam ser avaliados.
"As pessoas sempre falam que é bom ser diversificado e, de fato, é ótimo. Só que custa dinheiro quando isso não é a tua vantagem natural. A conta que você tem que fazer é a vantagem inversa. A desvantagem de você forçar uma diversificação adicional a que seria naturalmente observada", avalia.
E é em meio às discussões sobre o aprofundamento das relações comerciais entre os dois países que empresas chinesas anunciaram a intenção de investir até R$ 27 bilhões nos próximos anos no Brasil.
A empresa Envision anunciou um investimento de R$ 5 bilhões para produzir combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês) a partir de cana-de-açúcar no Brasil.
A montadora chinesa GAC confirmou um aporte de US$ 1,3 bilhão (R$ 7,39 bilhões) para a produção de carros elétricos e híbridos em Goiás, além da construção de um centro de pesquisa e desenvolvimento no Nordeste.
A GWM, outra montadora chinesa, anunciou R$ 6 bilhões para expandir suas operações no Brasil focadas na exportação de automóveis para a América Latina.
A Windey, especializada em turbinas eólicas de grande porte, informou que destinará R$ 3 bilhões ao Piauí em projetos de energia eólica, solar, armazenamento e termossolar.
A Didi, dona do aplicativo de mobilidade 99, anunciou que iria aplicar R$ 1 bilhão em infraestrutura de recarga para veículos elétricos no país.
O grupo de delivery Meituan e a rede de fast food Mixue anunciaram que pretendem se instalar no Brasil, com investimentos de R$ 5 bilhões e R$ 3,2 bilhões, respectivamente.
Também foi firmado um acordo com a fabricante de semicondutores Longsys, que construirá unidades em São Paulo e Manaus com R$ 650 milhões.
Parte desses investimentos fazem parte de um projeto mais amplo do governo para tentar promover a chamada "neo-industrialização" do país a partir da implantação de fábricas chinesas e de outros países no Brasil.
Infográficos por Caroline Souza, Equipe de Jornalismo Visual da BBC News Brasil
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