
"Quando a morte quiser vir, que venha." Em julho de 2024, José "Pepe" Mujica havia terminado o tratamento de câncer de esôfago, diagnosticado três meses antes. Em casa, no Rincón del Cerro, em Montevidéu, o presidente filósofo recebeu o humorista e roteirista Jordi Évole para uma entrevista. Xingou o presidente russo Vladimir Putin de "hijo de puta", criticou a sociedade que, segundo ele, se "autoexplora", refletiu sobre o envelhecimento. Por fim, falou, sem filtros, sobre a finitude da vida. "Sei que vou morrer logo, mas não penso na morte, sigo fazendo projetos. Amanhã me despertarei morto, e tchau."
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Quis a morte chegar 10 meses depois da conversa. Pepe Mujica se despediu ontem, aos 89 anos, em casa, vítima do câncer, que evoluiu para uma metástase no fígado. Foi seu herdeiro político quem deu a notícia, pela rede social X. "Com profunda dor comunicamos que faleceu nosso companheiro Pepe Mujica. Presidente, militante, referência e líder. Vamos sentir muito a sua falta, Velho querido", escreveu o presidente Yamandú Orsi, eleito no ano passado, com forte campanha de Mujica.
Conhecido como "o presidente mais pobre do mundo" pelo estilo de vida austero, Pepe Mujica foi um dos líderes globais mais populares dos séculos 20 e 21. Dirigia um fusquinha azul 1982, ofereceu o Palácio Presidencial — onde jamais quis morar — para abrigar sem-teto no inverno de 2013. Quando anunciou o câncer, recebeu oferta de grandes centros oncológicos internacionais, inclusive, do Brasil, mas decidiu se tratar na capital uruguaia. Frequentemente, recorria ao Centro de Assistência do Sindicato Médico do Uruguai, uma agremiação que atuou vigorosamente contra a violação dos direitos humanos pela ditadura cívico- militar (1973-1985).
José Alberto Mujica Cordano nasceu em Montevidéu em 20 de maio de 1935. Órfão de pai aos 8 anos, cultivou e vendeu flores em feiras livres. A agricultura o acompanharia até o fim da vida — ele mesmo plantava o que consumia, na chácara em que morava com a mulher, a senadora Lucía Topolanksk, com quem ficou casado por mais de 40 anos.
Guerrilha
Na década de 1960, trocou as flores pela guerrilha, ao se juntar ao Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros (MLN-T). Inspirada na revolução cubana, a organização tinha como objetivo derrubar o "Estado burguês" e, para isso, lançou mão de assaltos, sequestros e assassinatos. Antes disso, militou no conservador Partido Nacional, ao qual a família estava ligada. Preso quatro vezes, fugiu duas — incluindo a célebre escapada da penitenciária de Punta Carretas, em 1971, com uma centena de detentos. Em 1972, foi recapturado. Durante 13 anos ficou isolado e foi torturado. Muitas vezes privado de água, contou que recorreu à própria urina para não morrer desidratado.
A anistia chegou em 1995, quando foi eleito deputado pelo Movimento de Participação Popular (MPP). Em 2000, chegou ao senado e, cinco anos depois, assumiu como ministro da Pecuária do governo de Tabaré Vazquez.
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Das armas às urnas, Mujica abraçou a democracia após a anistia e foi eleito presidente do Uruguai em 2009. Seu governo foi marcado pelo apoio a iniciativas sobre direitos reprodutivos, a união civil entre pessoas do mesmo sexo e a produção e venda de maconha recreativa. As revistas Foreign Policy e Time o elegeram uma das 100 pessoas mais influentes do mundo.
O governo popular não foi isento de problemas: Mujica deixou a presidência com um deficit de 3,5% do Produto Interno Bruto (PIB) e um rombo nas finanças da companhia de petróleo estatal. Ainda assumiu o Senado mais uma vez, mas, em outubro de 2020, aos 85 anos, abandonou a cadeira devido aos riscos da pandemia de covid-19. Jamais deixou de ser uma importante liderança na América Latina: sua chácara em Rincón del Cerro foi um verdadeiro centro de peregrinação de escritores, jornalistas, cineastas e, principalmente, políticos.
Uma companhia frequente foi o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, que conheceu em 2005 e de quem se tornou amigo cinco anos depois. Em 2022, Mujica o visitou na prisão, em Curitiba. No Uruguai, Lula já pegou carona no fusquinha azul e esteve em Rincón del Cerro. Em dezembro do ano passado, o brasileiro condecorou Mujica com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, maior honraria brasileira. Ontem, o Itamaraty relembrou o último encontro entre os dois líderes. Em nota, o governo chamou o uruguaio de "grande amigo do Brasil" e "um dos mais importantes humanistas de nossa época".
Homenagens
Vários líderes mundiais prestaram homenagens a Mujica. "Um mundo melhor. Foi nisso que Pepe Mujica acreditou, fez campanha e viveu", disse Pedro Sánchez, primeiro-ministro da Espanha. "Adeus, amigo. Espero que um dia a América Latina tenha um hino, espero que um dia a América do Sul se chame Amazônia", escreveu, no X, o presidente colombiano Gustavo Petro. "Sem (o papa) Francisco e sem Pepe, o mundo se torna mais triste e mais fraco. Minha memória para sempre a esse grande uruguaio", lamentou Alberto Fernández, ex-presidente argentino.
Quando anunciou o tumor no esôfago, em 29 de abril de 2024, Mujica agradeceu à vida. "A vida é tão bela que não faz sentido sacrificá-la por motivos estúpidos. No mais, sou grato." Mais de um ano depois, em janeiro deste ano, ao contar que não se trataria mais do câncer, tentou tranquilizar seus admiradores. "Sinceramente, estou morrendo. E o guerreiro tem direito ao seu descanso."
O governo do Uruguai decretou luto oficial de três dias. O ex-presidente uruguaio será velado a partir das 12h de hoje no Salão dos Passos Perdidos do Palácio Legislativo. A pedido de Mujica, seu corpo será cremano e as cinzas enterradas ao lado de Manuela, a cadelinha de três patas que o acompanhou por 22 anos, no jardim de sua chácara.
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Depoimento
Eu me lembro das muitas conversas com ele, geralmente conversas curtas, rápidas, de quando encontrava em eventos. Mas, no dia que em que fui para a casa dele, ele teve uma conversa mais longa. Desde a primeira frase, parava para me olhar, eu tinha medo de perder a concentração! Ele prestando tanta atenção assim, isso em 2016, quando ele já tinha 80 e tantos anos. Enfim, era um cara muito carinhoso, sem o sentido piegas, mas no sentido de ser solidário, estar ali contigo de verdade, independentemente de quem você fosse. Só que não era também esse vovozinho, terno, simpático, carinhoso que as pessoas pensam não; era o cara que tinha seus ataques, suas explosões também de mau-humor, era o cara rabugento que falava muito palavrão. O Pepe foi essa pessoa muito simples, com uma inteligência, uma perspicácia muito grande, embora jamais fizesse questão de mostrar as suas qualidades. Vai fazer muita falta nesse momento. Tinha a capacidade de se preocupar com o mundo, uma inteligência rara e uma empatia com o próximo tremenda.
Rogerio Thomaz Jr., jornalista, escritor e mestrando em Estudos Latino-Americanos na Universidade Nacional de Cuyo, na Argentina
Eu acho....
A morte de Pepe Mujica marca o fim de uma era para a esquerda latino-americana. Talvez ele tenha sido um dos últimos grandes guerrilheiros revolucionários de nossa região. Mujica foi um símbolo ímpar: presidente austero, humanista e defensor incansável da integração regional. Sua trajetória e seu discurso ético e anticonsumista conquistaram respeito mundial e o diferenciaram de outros líderes por sua autenticidade e simplicidade. Ele deixa um legado transformador não apenas para a política, mas para toda a sociedade uruguaia, latino-americana e para o mundo. Denunciou a crise civilizacional de nosso tempo. Durante seu governo, o Uruguai se destacou internacionalmente ao aprovar a união homoafetiva, tornando-se um país pioneiro da América Latina a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, sendo um avanço importante para os direitos civis. Outro marco foi a descriminalização do uso da maconha: o Uruguai se tornou o primeiro país do mundo a legalizar e regulamentar todas as etapas do mercado da cannabis, do cultivo à venda em farmácias, estabelecendo um modelo pautado na redução de danos e controle do uso da maconha. Mujica também liderou a aprovação da lei que garantiu a autonomia do corpo das mulheres, descriminalizando o aborto até a 12ª semana de gestação e assegurando acesso ao procedimento pelo sistema público de saúde, medida inédita na região. Mujica consolidou a democracia uruguaia, ampliando a participação popular, fortalecendo instituições e promovendo políticas de combate à pobreza e à desigualdade, com programas sociais e aumento de salários. Sua atuação como presidente foi marcada ainda pela defesa da integração regional latino-americana, buscando maior cooperação entre os países do continente e fortalecendo blocos como o Mercosul.
Gustavo Menon, coordenador do curso de Relações Internacionais na Universidade Católica de Brasília
Três perguntas para...
Aline Arruda, professora de relações internacionais do CEUB
Mujica e o papa Francisco morreram com menos de um mês de diferença. Ambos eram reconhecidos pelo estilo de vida simples. O que deixam de exemplo para outros líderes?
É uma coincidência que chama atenção: duas figuras que adotaram um estilo de vida muito simples e coerente com aquilo que pregavam, e que foram chefes de Estado. Tanto Mujica quanto o papa Francisco levavam uma vida desapegada de bens materiais, e isso servia como exemplo para outros líderes. É uma lembrança de que a política deve ser feita para os outros, e não para benefício próprio. Essa escolha por uma vida austera, sem excessos, mostra que é possível liderar com ética, com empatia e com foco no bem comum.
Como governante, Mujica soube dialogar com as mudanças globais?
Sem dúvida. Mujica soube se adaptar bem às transformações globais. Mesmo sendo um grande representante da esquerda, em um momento de avanço da globalização liberal, ele conseguiu conduzir o Uruguai com um olhar progressista. Durante sua gestão, houve avanços importantes nos direitos humanos, no respeito à população LGBTQIA+, nas políticas para mulheres. Ele era um defensor dessas pautas, mesmo em um contexto global que ainda hoje é marcado por resistências e por uma onda de conservadorismo. Mujica conseguiu fazer essa transição e mostrar que é possível governar com valores de esquerda em sintonia com as novas demandas do mundo contemporâneo.
Qual o principal legado de Mujica para além da política?
O maior legado de Mujica é mostrar que é possível viver de forma simples, com foco em valores afetivos e coletivos, e ainda assim liderar um país com dignidade. Ele foi um contraponto ao consumismo exacerbado e ao apego aos bens materiais que marcam o mundo capitalista atual. Demonstrou, com sua prática e pensamento, que a felicidade pode estar mais ligada à simplicidade do que à acumulação. Sem romantizar a pobreza, o que ele jamais fez, Mujica nos ensinou que o desejo constante por mais não leva necessariamente à realização pessoal. Ele deixou um legado de reflexões profundas, coerência ética e compromisso com a coletividade, que certamente seguirá inspirando muitas pessoas.
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