ANÁLISE

'Trump nega todos os valores defendidos pelos EUA desde a 2ª Guerra Mundial', diz Ricupero

Com a experiência de quem foi secretário-Geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, embaixador e ex-ministro Rubens Ricupero considera que o presidente daquele país representa, interna e externamente, a opção do poder pela força

No ano passado, aos 88 anos, Rubens Ricupero lançou o seu livro Memórias (Editora Unesp) e apresentou um pouco de inúmeras vidas -  (crédito: Divulgação)
No ano passado, aos 88 anos, Rubens Ricupero lançou o seu livro Memórias (Editora Unesp) e apresentou um pouco de inúmeras vidas - (crédito: Divulgação)

As ameaças do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de implodir o sistema multilateral entre os países representam uma negação dos valores defendidos pelo país desde o fim da Segunda Guerra Mundial, na avaliação do embaixador brasileiro Rubens Ricupero, que teve passagem em posições de destaque por inúmeros organismos internacionais e como ministro no Brasil.

"Os Estados Unidos foram os fundadores organizadores do sistema do pós-guerra, tanto da organização das Nações Unidas, da Carta da ONU, da criação do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e do Gatt, em 1947, que é o precursor da atual Organização Mundial de Comércio. Essa política que Trump representa hoje é uma encarnação da negação desse todo, de todos esses valores que até agora se manifestou mais em relação ao comércio, com a volta ao protecionismo", diz ele em entrevista à BBC News Brasil.

Descendente de artesãos da Itália Meridional e criado no bairro do Brás, na região central da capital paulista, Ricupero, hoje aos 88 anos, foi secretário-Geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), subsecretário-geral da ONU, embaixador em Roma e Washington e ministro do Meio Ambiente e da Fazenda (no governo Itamar Franco).

Vivências que lhe permitiram viver (e, em alguns casos, ser protagonista) de momentos importantes da História recente, como os primeiros anos de Brasília, ainda antes do golpe militar, a gestação da Eco-92 e os primeiros passos do Plano Real.

Na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, foi contemporâneo do jurista Fabio Konder Comparato, do escritor Raduan Nassar e do diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa.

No Itamaraty, onde ingressou por concurso, conheceu os escritores João Guimarães Rosa, Vinícius de Moraes e João Cabral de Melo Neto, que tiveram carreira no Ministério das Relações Exteriores, e Clarice Lispector, na época em que foi casada com o diplomata Maury Gurgel Valente. Trabalhou no gabinete do ministro San Tiago Dantas no governo João Goulart.

Destas experiências, tira preocupações com a situação atual do planeta. Seja pelas expectativas baixas em relação a resultados efetivos da COP-30, que será realizada neste ano em Belém (PA), a crise humanitária em relação aos migrantes, a ascensão global da extrema-direita e a ofensiva de Trump contra o multilateralismo.

"Tem uma frase que eu gosto muito, que é do segundo secretário-geral da ONU, o sueco Dag Hammarskjöld. 'É preciso lembrar que a ONU foi criada não para nos levar ao paraíso, mas para evitar de nós cairmos no inferno'. Acho que é isso. O mundo do multilateralismo, se conseguir evitar que a gente chegue ao inferno, já será um grande resultado", afirma.

Mesmo com um diagnóstico dos mais sombrios, Ricupero, diplomaticamente, considera que o importante é seguir avançando nas soluções possíveis. Uma ação para enfrentar o mundo real e não só de construção de utopias.

Leia a seguir a entrevista que concedeu à BBC News Brasil:

Rubens Ricupero de terno, braços cruzados, posando para retrato
Divulgação
No ano passado, aos 88 anos, Rubens Ricupero lançou o seu livro Memórias (Editora Unesp) e apresentou um pouco de inúmeras vidas

BBC News Brasil - Como o senhor analisa os primeiros meses deste novo mandato de Donald Trump como presidente dos EUA?

Rubens Ricupero - Este mandato do Trump, muito mais do que o primeiro, indica uma ruptura aparentemente radical e irreversível com muita coisa que os Estados Unidos vinham fazendo, tanto na política interna como na política externa.

Na política interna, a gente nota a reversão por completo de décadas de política de ação afirmativa para promover maior justiça racial e a promoção de setores desfavorecidos. Tudo isso agora se encontra absolutamente abandonado e condenado.

Toda aquela política de busca de um maior equilíbrio social volta-se uma tendência, aparentemente, de uma política baseada apenas no mérito, mas que tende, na prática, de reforçar as desigualdades herdadas do passado, tanto raciais como sociais.

BBC News Brasil - E o que, na avaliação do senhor, faz com que a situação chegue a este ponto?

Ricupero - É expressão de uma reação social profunda do eleitorado, que é uma das características da atual extrema direita. Tanto nos Estados Unidos como em outros países. Nos países europeus ela assume aspectos diversos conforme a realidade de cada país.

Mas, no caso americano, não há dúvida que ela representa uma negação de tudo o que vinha se fazendo desde o Martin Luther King (pastor batista e ativista de direitos humanos que conquistou o Nobel da Paz de 1964), da política da grande sociedade – dos presidentes Lyndon Johnson, do presidente Kennedy – e é uma reação nesse sentido, que tem quase que a importância que teve a política do New Deal (programa de recuperação da economia e de combate à pobreza estabelecido nos anos 1930 como resposta a Grande Depressão de 1929), do presidente Franklin Delano Roosevelt, só que com um sentido totalmente negativo.

BBC News Brasil - Por que é um New Deal às avessas?

Ricupero - A política do Franklin Delano Roosevelt era uma política de promoção social, de busca de um equilíbrio maior. Essa, ao contrário, é uma reação contra isso e, nesse sentido, uma política que merece bem o qualificativo de reacionária, retrógrada, anacrônica e que é difícil imaginar de consequências poderá ter no futuro para o tecido social dos Estados Unidos, uma sociedade que já vem apresentando características de uma tensão muito grande e talvez até, de certa forma, esses sinais e sintomas de doença social expliquem um pouco do que permitiu a chegada ao poder do Trump.

Também é verdade em relação à política econômica externa, com o abandono de tudo que tinha os Estados Unidos vinham representando desde o final da segunda Guerra Mundial.

BBC News Brasil - Como assim?

Ricupero - Os Estados Unidos foram os fundadores organizadores do sistema do pós-guerra, tanto da organização das Nações Unidas, da Carta da ONU da criação do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e do GATT, em 1947, que é o precursor da atual Organização Mundial de Comércio.

Essa política que Trump representa hoje é uma encarnação da negação desse todo, de todos esses valores que até agora se manifestou mais em relação ao comércio, com a volta ao protecionismo.

Já havia sinais antes, na própria presidência do Obama, em 2015, os Estados Unidos já começou a recusar a aprovar a aprovação de novos juízes para corte de apelação da Organização Mundial de Comércio, paralisando assim, de certo modo, o sistema de solução de controvérsias.

BBC News Brasil - E qual foi a mudança em relação a este movimento anterior?

Ricupero - Agora foi muito mais longe, com essa aplicação sistemática de tarifas cada vez mais altas a troco e a direito. Não só por razões comerciais, mas como no caso invocado por Trump e pelo Canadá e o México, por razões terceiras que não têm nada a ver com o comércio, por causa da migração, por causa da pretensa falta de firmeza em combater o ingresso de drogas que acabam provocando a morte de norte-americanos.

É o uso da arma comercial como um instrumento político para outros objetivos. Sem contar também essa reação aos migrantes e refugiados, que também não se sabe que consequências terá a longo prazo, uma vez que, na opinião de muitos economistas, o motivo principal que explica o melhor desempenho econômico dos Estados Unidos comparado à Europa ou Japão é justamente a o maior ingresso de imigrantes que o Estado recebeu por ano, 1 milhão mais de imigrantes legais ou ilegais.

E, nos últimos anos, chegou uma soma total de 5 milhões de migrantes que aumentaram com tanta força de trabalho, aumentaram o contingente de consumidores. Então, embora até agora a expulsão de migrantes é anunciada com muita fanfarra, como visando atingir milhões de pessoas, na prática superou não os números que já se registra que o governo Joe Biden.

BBC News Brasil - E qual é o impacto dessa política de combate à migração?

Ricupero - Não se sabe se isso vai ser retomado e até agora é difícil de fazer uma previsão, se essa política anunciada pelo Trump contra os migrantes, que foi a razão de ele ter sido eleito, vai ser apenas um jogo de aparência ou se ele vai mesmo levar avante a expulsão de migrantes. Até porque é algo que afeta a sobrevivência de certos setores da economia daquele país.

Por exemplo, se ele realmente se decidir a expulsar os migrantes ilegais, a agricultura norte americana vai ficar praticamente sem mão de obra. Então é preciso saber até que ponto isso é para valer. Até agora não deu para chegar a uma conclusão.

O que, como eu acabei de dizer, é um contraste entre a retórica anunciada e o que ele fez até agora. O número de migrantes dispostos na prática não é maior do que a média expulsa pelos presidentes anteriores.

BBC News Brasil - E como isso mexe no cenário internacional?

Ricupero - Tudo isso converge para esse clima maior, que é esse abandono pelos americanos e aquilo que constituiu até agora a política externa dos Estados Unidos desde o final da Segunda Guerra Mundial, culminando agora com essa atitude surpreendente de que ele trata com dureza e hostilidade a Europa e os países vizinhos.

Aparentemente, ele considera como adversários justamente aqueles países europeus que são os que sustentam ainda os valores do combate ao aquecimento global, a construção de uma sociedade mais equilibrada, com bem-estar social. E, ao contrário, ele abraça oligarcas e revela simpatia por homens fortes, de todo o tipo, entre eles, o principal que é o presidente russo Vladimir Putin.

Há quem diga que isso é apenas uma tentativa de refazer hoje, de uma forma diferente, aquilo que o Henry Kissinger (secretário de Estado dos EUA nos governos dos republicanos Richard Nixon e Gerald Ford, nos anos 1970) fez quando adotou aquela política de aproximação da China afastando a China da União Soviética e enfraquecendo então os soviéticos.

Mas acontece que a China já era um país que tinha divergência com a União Soviética, e que o Kissinger fez foi aproveitar essa divergência, aprofundando essa possibilidade.

Rubens Ricupero dá palestra em apresentação de livro
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'Tudo isso converge para esse clima maior, que é esse abandono pelos americanos e aquilo que constituiu até agora a política externa dos Estados Unidos desde o final da Segunda Guerra Mundial'

BBC News Brasil - Esta política pode ser bem-sucedida?

Ricupero - O que vemos hoje é uma coisa que não parece destinada a êxito, porque apenas acumula concessão após concessão aos russos, sem que eles tenham esboçado nenhum movimento para encontrar, pelo menos a meio caminho, essa boa vontade americana.

Até agora, o que nós vimos foram concessões unilaterais dos Estados Unidos, sacrificando em primeiro lugar a Ucrânia, mas em segundo lugar, os aliados europeus e a própria Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

BBC News Brasil - O senhor acredita que ele levará esta política às últimas consequências?

Ricupero - Nós estamos ainda muito no começo e é difícil prever até o Trump irá, o que é blefe nisso e o que é de fato intenção de chegar até as últimas consequências. Nos últimos dias ainda tem se revelado uma espécie de incredulidade, uma relutância em aceitar como definitivas certas atitudes americanas em relação à Ucrânia e à Aliança Atlântica. Mas cada dia que passa a gente vê que essas medidas parecem ter sido tomadas para permanecer.

Veja-se, por exemplo, a decisão agora em suspender a ajuda à Ucrânia. Não sabemos se essa suspensão é definitiva ou não. Mas vamos ter que ver mais no fato de que a luta está suspensa e é difícil prever até que ponto a Aliança Atlântica vai poder continuar a contar, não digo com a presença americana, mas com a participação tão maciça dos americanos, que representam mais de 65% dos recursos da Otan.

Então, resumindo, o que eu diria é que nós estamos diante de um acontecimento raro, que é de fato uma grande disrupção, uma ruptura em profundidade do mundo que nós estávamos acostumados. E é difícil neste momento, tentar fazer uma previsão do mundo que virá pela frente, mas tudo indica que não será nada de bom. Tudo indica que será de novo a volta a um sistema mundial baseado no poder e na força, em que os fracos são os que perdem mais.

BBC News Brasil - Como o senhor vê a relação com a Ucrânia fala sobre o futuro dessa política de Trump?

Ricupero - A Ucrânia é um modelo de país que está sendo sacrificado, que está sendo lançado para satisfazer a as ambições do governo americano de chegar a um entendimento com a Rússia e, a partir daqui nós temos que nos acostumar a repensar o mundo sob novas bases.

Eu diria isso do momento atual, não adiantando mais, apenas dizendo que as tendências hoje estão visíveis são contra imigrantes, refugiados, o direito internacional, a Carta das Nações Unidas e dos compromissos da Aliança Atlântica. É o abandono até de promessas e de compromissos anteriores, como dos casos da política comercial. E não podemos saber ainda dos desdobramentos. Há quem ache nos Estados Unidos que, nos capítulos próximos, até o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial estarão em perigo.

E nós não sabemos o que vai acontecer até as Nações Unidas, porque a grande contribuição, mais de 20% dos recursos, vêm dos americanos. Então, é como eu disse, é um momento sem precedentes na história mundial das últimas décadas.

BBC News Brasil - E qual o futuro deste ataque aos migrantes, para além das fronteiras dos Estados Unidos?

Ricupero - De maneira geral, como princípio, a liberdade de migrar é um fator positivo para os países. Na Europa tem uma reação grande até porque boa parte desses imigrantes vem de culturas diferentes, no Norte da África, do Oriente Médio. Com uma religião diferente, como no caso dos muçulmanos. Isso provoca uma reação da população.

O importante nisso é encontrar um ponto de equilíbrio. Sobretudo em países que estão em uma situação demográfica de declínio, como acontece em muitos países da Europa e até aqui no Brasil. No fim da próxima década, a população do Brasil deve começar a cair e não a aumentar. Todos esses países vão precisar de um reforço de mão-de-obra.

O Brasil mesmo tem uma política de favorecer o ingresso de migrantes qualificados. É algo que vai acontecer em muitos países. O grande problema é saber o que vai acontecer com essa centena de milhares de imigrantes que não têm qualificação.

O ideal seria que houvesse programas mundiais para fazer que eles se fixassem em seus países de origem e pudessem encontrar empregos e dar dinamismo para as economias locais. Mas é um problema grande que não será resolvido em poucos anos.

BBC News Brasil - Quais os impactos do discurso de Trump em relação a Israel e a Faixa de Gaza?

Ricupero - Ainda é cedo para fazer um juízo definitivo que, de um lado eu acho que é inegável que as manifestações do Trump, por mais bizarras que possam parecer, como aquela de assumir a Faixa de Gaza para transformá-la numa grande atração turística ou a ideia é negociar diretamente com a Rússia sem a participação ucraniana, são ideias excêntricas e dificilmente vão funcionar.

Agora elas têm um pouco o efeito, que o presidente da França, Emmanuel Macron, chamou de um choque elétrico para os países e as pessoas que estavam mais ou menos em impasse essa intervenção dele provocou o movimento. Agora, se esse movimento vai ou não é se dirigir a um desenlace positivo, mas teremos que esperar nas próximas semanas para porque até agora isso não há muitas indicações.

No caso da Faixa de Gaza, felizmente, apesar de todas as previsões pessimistas, o cessar fogo na primeira fase acabou se cumprindo de uma maneira cruel, com a morte daquelas crianças israelenses, uma coisa que deixa muitas feridas e muito ressentimento. Mas eles ainda estão negociando. É prematuro dizer se vai haver ou não uma segunda fase e eu espero que sim, que se encontre uma maneira de resolver esse problema do Hamas, porque Israel também precisa ter garantias mínimas de segurança.

O caso da Ucrânia ainda a situação é bastante imprevisível, tanto que não se conseguiu ainda um sucesso, ao contrário da Faixa de Gaza. O primeiro passo, sem dúvida, com diz o Trump com razão, é atingir um cessar fogo e, a partir daí, negociar as outras questões que são mais complicadas.

BBC News Brasil - Qual a sua opinião sobre a tensão entre Brasil e Estados Unidos no julgamento da responsabilização das redes sociais pelo Supremo Tribunal Federal (STF)?

Ricupero - Os Estados Unidos têm um entendimento muito diferente do nosso. Aqui, nós temos instrumentos que consideramos adequados, de acordo com nossa Constituição para proteger a liberdade de pensamento e de informação, mas dentro de limites que não permitem a subversão das instituições.

Tanto assim que você vê a diferença entre os dois países que aqui o Bolsonaro foi declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral (e depois réu pelo Supremo Tribunal Federal por tentativa de golpe) e lá isso não aconteceu com o Trump e permitiu a ele voltar ao poder. São duas concepções diferentes e, obviamente, a nossa é a que prevalece em nosso território. Pode se discutir, em tese, qual abordagem é melhor. Eu estou convencido que a nossa é melhor.

Acho que um país que tem uma democracia muito vulnerável e muito precária como a nossa, precisa de instrumentos de autodefesa. Existe uma tendência nos Estados Unidos, não só agora, também no passado, de querer dar as leis e ações americanas um caráter além do próprio território. Eles querem impor a outros países os mesmos valores que consideram adequados. Obviamente, isto não é aceitável para nós. E temos que defender o nosso sistema de valores.

Ricupero posa para foto
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'A Ucrânia é um modelo de país que está sendo sacrificado'

BBC News Brasil - Como é que fica em relação às ameaças de retaliação contra o ministro Alexandre de Moraes, do STF?

Ricupero - Não vejo que isso possa ter desdobramentos mais graves para o Brasil, porque, como já se viu nesse primeiro entrevero [a ação na Justiça da Flórida contra Moraes], a própria justiça americana já se declarou incompetente, porque considerou que as decisões brasileiras vigoram em território brasileiro. E este é nosso entendimento.

Nós nunca entendemos que deveriam vigorar além disso. Outro aspecto que existe, que é aquele do refugiado brasileiro (Allan dos Santos) que está nos Estados Unidos, qualquer iniciativa para julgá-lo no Brasil tem de seguir os trâmites legais, que é um pedido feito pelos canais competentes para que ele seja eventualmente repatriado. Até acho que não é muito provável que aceitem.

BBC News Brasil - Mas os republicanos estão articulando ataques ao ministro no Congresso também. Não pode criar uma situação mais grave?

Ricupero - Eles tomaram aquela atitude de aprovar em uma comissão, mas que ainda não é lei, não passou nem na Câmara. Claro que dentro da soberania deles, mesmo que este ato possa ser considerado pouco amigável, é um ato que, se o Congresso americano quer adotar, ele pode adotar.

Mas é algo que, naturalmente, vai provocar uma resposta à altura do Brasil. Não no sentido de retaliação, que o Brasil não faz isso, mas de mostrar que se trata de uma atitude despropositada, que não tem cabimento querer punir, com uma sanção qualquer, um ministro do Supremo Tribunal do Brasil que adotou uma iniciativa que foi aprovada pelo plenário do tribunal.

BBC News Brasil - Os interesses públicos e privados não lhe parecem muito misturados dentro do governo dos EUA no debate sobre o controle das redes sociais?

Ricupero - É preocupante porque acho que nunca antes o governo americano ou com qualquer o governo, essas empresas que são poderosas e pela sua força econômica e tecnológica, tinham adquirido uma influência tão alta como adquirida agora, inclusive o caso Elon Musk, mas que é um uma posição complicada que nunca chega a ser de funcionário do governo, mas com a missão de tornar o governo racional.

Chegamos a assistir de fato a um fenômeno complicado que nos Estados Unidos já está provocando muitas reações. Como é o caso daqueles procuradores de Estados governados por democratas já recorreram à Justiça para tentar derrubar várias dessas iniciativas. Algumas tiveram acolhida, outras não. Mas ainda é bastante incerto o panorama.

A verdade é que, tanto no caso do Brasil como da União Europeia, vai caber a nós mesmo a casos de legislação adequada. No nosso caso, ainda temos um ponto fraco, porque o Congresso não foi capaz até agora de votar uma lei sobre essas plataformas.

Tanto assim que o Supremo Tribunal chamou a si próprio e a discussão do assunto, mas também concluiu. Acho que a primeira prioridade no Brasil deveria ser definir uma lei adequada para o comportamento dessas plataformas.

Neste sentido, a União Europeia está mais avançada. Eles já adotaram um código e têm até aplicado multas para algumas dessas empresas. E cabe a cada país fazer isso, seguir sua própria lei.

Os americanos podem reagir, mas eles não têm um extraterritorial e pode ameaçar e aplicar sanções comerciais, mas é limitado por ver que eles terão de impor a vontade deles aos outros. Mas no caso, infelizmente, nós estamos indefinidos nessa matéria e nem temos ainda uma clareza de qual é o tipo de norma que o Brasil gostaria de ter.

BBC News Brasil - E como tudo isso impacta em outras pautas, como a ambiental?

Ricupero - O momento é muito negativo. O sistema multilateral já estava bastante vulnerável, inclusive com essa violação da regra das Nações Unidas com a ocupação da Ucrânia pela Rússia.

Com o advento do Trump, a situação é mais grave, porque ele chegou mesmo a retirar o país de organismos como a Organização Mundial de Saúde. Eu acredito que, tal como ocorreu no primeiro mandato dele, embora isso seja negativo e vá ter efeito muito perniciosa no caso do combate ao aquecimento global.

Agora, com a COP 30 Brasil, vai prejudicar a atividade, mas não vai deter o esforço do resto de procurar encontrar um caminho que seja negociado pela maioria dos países. Os Estados Unidos acabam tendo de depender dos demais matéria de vacinas e de combate às mudanças do clima. E eu acredito que o presidente Trump não tenha atrás dele a unanimidade do país.

Os Estados Unidos têm Estados como Califórnia, que são maiores e mais poderosos do que muitos países, e que são extremamente ambientalistas. Da mesma forma, Nova York, toda aquela costa leste da Nova Inglaterra. Esses estados governados pelos democratas, aquela grande aliança de cidades que foi criada pelo antigo prefeito de Nova York em favor do clima. Você vê que não é só preto e branco.

O governo americano está numa fase muito perniciosa, danosa, mas tem um esforço no próprio país. E, fora dos Estados Unidos, você tem a União Europeia e países como o Brasil e outros que estão engajados na busca de reforçar o multilateralismo. Para nós, no Brasil, o enfraquecimento do sistema multilateral é muito ruim.

BBC News Brasil - Por que especificamente para o Brasil?

Ricupero - Porque, como nós não temos poder militar, nem poder econômico de impor sanções, o que nós temos é a possibilidade de atuar diplomaticamente nesses organismos.

À medida que eles se enfraquecem, é ruim para nós. Mesmo o enfraquecimento da Organização Mundial do Comércio é ruim para nós. Porque, normalmente quando você é vítima de uma injustiça como essas tarifas unilaterais, você reclama à OMC, que estabelece um painel. E, se você ganha, você tem chance de restabelecer a situação como aconteceu com o Brasil naquela ação que ele fez contra os Estados Unidos por causa de subsídio ao algodão. Mas agora, como a OMC está enfraquecida, esse recurso não existe, pelo menos temporariamente.

Não vou esconder que é um momento muito negativo. Só que eu espero que ele não vá durar para sempre, porque o próprio Trump tem um período de governo limitado. E, além do mais, nós não sabemos ainda que reação acabará havendo na economia americana, porque as tarifas vão prejudicar. Por exemplo, ao criar uma tarifa de 25% sobre aço e alumínio, ele vai encarecer muito os custos de produção da indústria americana. Todo mundo está agora em estado de choque, mas pouco a pouco eles estão começando a se organizar e a protestar. Já houve protestos de algumas grandes empresas. Nós temos que aguardar o desdobramento dos assuntos.

Donald Trump e Elon Musk
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Força das empresas junto ao governo Trump parece sem precedentes

BBC News Brasil - Como fica a expectativa para a COP 30, que será realizada neste ano, no Brasil?

Ricupero - A COP 30 terá um desafio muito maior do que foi, por exemplo, a Rio 92. Durante a reunião de 92 eu participei ativamente porque fui presidente da Comissão de Finanças. Aquilo aconteceu em um momento favorável, depois da queda do Muro de Berlim, com o fim do comunismo. Então havia um ambiente mundial muito favorável e nós pudemos avançar bastante.

Desta vez, o contexto é muito desfavorável. Por isso mesmo é preciso ter expectativa realista e ninguém pode esperar da COP 30 um avanço substancial. Eu acho que vai haver um esforço de países de procurar manter o avanço do Acordo de Paris O que o Brasil está fazendo me parece correto.

Fazer um apelo aos demais países para avançarem nos compromissos nacionais, que são voluntários. Mas é um progresso limitado. Ainda assim, o importante é manter o processo em andamento e conseguir avançar.

BBC News Brasil - E como o senhor avalia o comportamento do Brasil nesta pauta?

Ricupero - O Brasil peca por bastante incoerência. De fato, atitudes como querer explorar o petróleo na Foz do Rio Amazonas ou aderir à Opep não se harmonizam com um proativismo ambiental. Isso enfraquece bastante a posição de advocacia do Brasil. Não elimina, mas enfraquece, mas é um fator a mais de uma situação que já não é favorável.

A incoerência brasileira não é um apanágio só do Brasil. Tanto a China como a Índia que estão empenhadas sinceramente em melhorar a situação ambiental, ainda são países que dependem muito do carvão, e com isso são também incoerentes. Por isso é que eu acho que a gente precisa olhar o mundo como ele é e não como a gente gostaria que ele fosse. Com olhos de realismo. É o que eu procuro fazer.

BBC News Brasil - A aliança dos Brics pode exercer um papel como o dos países não-alinhados?

Ricupero - O papel dos países não-alinhados nos anos 1960 foi útil, mas limitado. Ele nunca foi capaz de impedir que houvesse aquela situação de Guerra Fria, um sistema bipolar que terminou, no fundo, por problemas internos da União Soviética.

O movimento dos Brics atualmente pode ser útil sobretudo no papel de resistência a essas tendências negativas que estamos assistindo no mundo. Resistência à crise do multilateralismo, ao abandono da causa ambiental, a sanções unilaterais.

São países que têm peso. Hoje em dia com o ingresso da China, da Rússia, da África do Sul, de alguns países árabes importantes, você tem uma boa parte da humanidade que faz parte desse grupo. Agora, é verdade que a que não tem uma coesão muito avançada, porque entre esses países há muitas diferenças na maneira de encarar as coisas.

BBC News Brasil - O multilaterismo é a melhor resposta para crise que vivemos?

Ricupero - Tem uma frase que eu gosto muito, que é do segundo secretário-geral da ONU, o sueco Dag Hammarskjöld. "É preciso lembrar que a ONU foi criada não para nos levar ao paraíso, mas para evitar de nós cairmos no inferno". Acho que é isso. O mundo do multilateralismo, se conseguir evitar que a gente chegue ao inferno, já será um grande resultado.

BBC
Leonardo Fuhrmann - De São Paulo para a BBC News Brasil
postado em 13/05/2025 16:14 / atualizado em 13/05/2025 20:06
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