
Nesta semana, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) avançou em mais um capítulo no julgamento dos denunciados por participação na trama golpista ocorrida para derrubar o atual governo. Por unanimidade, os ministros tornaram réus os integrantes do grupo 4, conforme divisão estabelecida pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet. São os acusados de disseminar fake news para criar um clima de desestabilização do Estado Democrático de Direito e também de constranger os militares que não aceitaram participar da conspiração.
Coautor do livro Defesa da Democracia no Brasil do Século XXI — Aspectos Controversos e Contemporâneos sobre Democracia Defensiva, o advogado e professor de direito administrativo da USP Gustavo Justino de Oliveira avalia que está em curso um importante momento para a defesa da democracia, uma vez que o STF vai estabelecer, com o julgamento em questão, a primeira jurisprudência sobre crimes envolvendo golpes de Estado. O jurista ressalta que a história brasileira é farta em episódios de golpes ou tentativas, mas nunca houve punições. O desfecho sempre foi a anistia. Agora, o STF apresenta ao país uma "jurisprudência defensiva".
Como avalia a divisão da denúncia da PGR em núcleos em relação à trama golpista?
O contexto fático e jurídico de uma série de eventos tão complexos como essa recente trama golpista de Estado com a qual o Brasil, e mais especificamente as instituições de justiça, viram-se obrigados a lidar, com efeito demandava tratamento lógico-racional e enquadramento jurídico-normativo adequados. A finalidade é tornar possível reconstituir e expor com precisão a diversidade e as nuances da atuação de todos aqueles que tiveram uma participação direta, indireta, estratégica, incentivadora e financiadora da tentativa do golpe, que levou à perpetração das condutas criminosas do 8 de janeiro de 2023, as quais ao fim e ao cabo realmente, no conjunto da obra, tinham por intenção original promover um golpe de Estado no país. Desmembra-se em um momento anterior para, em momento posterior, identificar do modo mais contundente, verídico e integrado possível a convergência de patologias criminosas que se formaram em torno da intenção de tomar o país de assalto, por um grupo que abertamente buscava se perpetuar no poder em afronta direta ao processo eletivo constitucional e ao Estado de Direito Democrático.
São atos diferentes descritos que se unem em uma grande organização para derrubar o poder, segundo o Ministério Público. Todos vão responder pelo conjunto da obra?
Exatamente. O esforço de separação dos atos, fases e contribuições delitivas que, ao final, atuaram e funcionaram como uma obra única e integrada tem como finalidade precípua identificar, categorizar melhor e enquadrar do modo técnico e preciso cada uma das condutas criminosas que assumidamente, direta ou indiretamente, visavam romper com a ordem institucional do país e permanecer indefinidamente no poder. Justamente por isso, embora as denúncias oferecidas pela PGR sejam segregadas, o processamento criminal de todos os denunciados, bem como de seus julgamentos e prováveis condenações, expressam com rigor as participações de cada um deles na deflagração de condutas criminosas voltadas a implementar um golpe de Estado no país. A segregação das condutas e a separação das denúncias, portanto, expressam técnicas próprias do direito, de racionalização e enfrentamento que, ao final, permitem melhor individualizar e responsabilizar adequadamente todos os envolvidos nesses tristes episódios que formaram a trama golpista.
Não há precedentes de julgamentos sobre tentativas de golpe. A interpretação será baseada em convicções parciais ou imparciais?
Embora a história político-institucional brasileira seja repleta de eventos golpistas e tentativas de golpe, a postura do sistema de justiça e da própria sociedade brasileira, até aqui, foi extremamente condescendente com criminosos golpistas, que jamais chegaram a ser devidamente e plenamente responsabilizados por seus crimes, sobretudo os militares. A pressa sempre foi a de proteger os envolvidos e alijá-los de um julgamento criminal legítimo, ou seja, uma cultura de se fazer prevalecer rapidamente um cenário de anistia, e nunca de responsabilização dos graves crimes perpetrados. Ademais, temos um contexto jurídico-normativo inovador com a Lei federal 14.197/21, que instituiu crimes contra o Estado Democrático de Direito, e portanto, os parâmetros e critérios de responsabilização e apenamento dos praticantes desses crimes precisa ser construído pelo sistema de justiça brasileiro, e é justamente o que o STF está buscando fazer neste momento: instituir uma jurisprudência de defesa da democracia que perpasse, no caso do processamento das denúncias da trama golpista, pela responsabilização criminal de todos os envolvidos, a partir do devido processo legal criminal, apoiado em garantias constitucionais de contraditório e ampla defesa, que obviamente envolve a imparcialidade do julgamento, a partir da hermenêutica (interpretação) de uma legislação que é extremamente recente e original.
No julgamento do recebimento da denúncia do núcleo 4, o crime descrito é coordenar ações de desinformação. Será um precedente importante para outros casos?
Acredito que, sim. Afora as resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, aplicáveis aos últimos pleitos eleitorais, que procuram de alguma forma regulamentar, coibir e responsabilizar os praticantes de desinformação eleitoral e que se utilizam da inteligência artificial de modo a afrontar a ordem institucional no transcurso de eleições, o Brasil ainda não aprovou uma lei de combate à desinformação, apesar de esforços e pressões nesse sentido por boa parte da população e de algumas instituições públicas. Bem por isso, caberá ao STF no julgamento da denúncia do núcleo 4, estabelecer precedentes formativos de uma jurisprudência de democracia defensiva, tendo por referência o uso da desinformação com a finalidade volitiva de desestabilizar o Estado brasileiro e que, no caso específico dessa trama golpista, tinha por intenção explícita romper com a ordem institucional e perpetuar um dado grupo político no poder, apoiado aberta e diretamente por grupos da sociedade brasileira, infelizmente.
Quais lições todo esse episódio deixa, na sua opinião?
A construção de uma jurisprudência defensiva (defesa da democracia) em um contexto de condenação criminal de envolvidos em práticas de tentativas de golpe de Estado parece-me ser o principal legado do julgamento da trama golpista pelo STF. Esses precedentes servirão para de fato e de direito condenar, pela primeira vez na história brasileira, autoridades, militares e pessoas físicas que tramaram um golpe de Estado, tendo também efeitos dissuasórios futuros de prevenir que novos atentados ao Estado Democrático de Direito sejam deflagrados. Finalmente, na atual formação do STF, e considerando a possibilidade de revisão da constitucionalidade da Lei da Anistia (ARE 1.501.674/PA, repercussão geral), parece ser clara a intenção da Corte Suprema de fixar novos entendimentos para a defesa mais efetiva da democracia no Brasil.