
Num momento em que as organizações criminosas surfam na globalização e tornam mais complexa a elucidação de esquemas graves, a cooperação internacional com intercâmbio de informações e trabalho muito além das fronteiras se torna vital. Esse tipo de investigação tem avançado, mas ainda há muito a ampliar na medida em que a tecnologia abre a cada dia mais caminhos para a criminalidade.
Com a experiência de ter atuado na cooperação internacional para investigar crimes transnacionais, Aras lançou nessa quarta-feira (7) a obra Cooperação Penal Internacional: obrigações positivas e o dever de cooperar, com apresentação do ex-ministro das Relações Exteriores e do Supremo Tribunal Federal Francisco Rezek.
Professor do IDP e da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Aras fala sobre a necessidade de o Ministério Público e a Polícia Federal trabalharem transnacionalmente com "força total", uma vez que facções criminosas brasileiras já estão espalhadas pelo mundo.
O mundo está aberto a trabalhar em cooperação para combater crimes?
De forma crescente, sim. Nas últimas décadas surgiu uma consciência internacional de que o enfrentamento eficaz à criminalidade transnacional, ao cibercrime e ao terrorismo exige mecanismos robustos de cooperação, para a obtenção de provas, a captura de foragidos e a recuperação de ativos. Organizações internacionais como a ONU, por meio da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo) e da Convenção contra a Corrupção (concluída em Mérida), estabeleceram marcos normativos que incentivam e, em certos casos, obrigam os Estados a colaborar entre si. Contudo, a abertura à cooperação ainda é desigual: países com sistemas jurídicos mais fechados ou com obstáculos burocráticos e políticos internos resistem a algumas formas de cooperação, especialmente quando os pedidos de assistência dizem respeito à corrupção, delitos ambientais e crimes financeiros.
Crimes como tráfico de drogas, sequestro, pedofilia, tráfico humano e lavagem de dinheiro são cada vez mais complexos. Como buscar intercâmbio de informações?
O intercâmbio de informações é possível por meio de canais formais, como o das autoridades centrais e das autoridades diplomáticas. Redes especializadas de cooperação e a atuação de múltiplos atores nacionais no cenário internacional também são meios eficazes. Os velhos mecanismos de cooperação jurídica (cartas rogatórias e pedidos de auxílio direto) começam a ser substituídos por órgãos supranacionais de articulação e por instrumentos de cooperação realmente direta, sem a intervenção de intermediários. Os canais de aproximação, como a Interpol, a Eurojust, a IberRed, as reuniões especializadas do Mercosul, o GAFI, o Grupo de Egmont são hoje fundamentais para promover a segurança dos Estados e das sociedades. É também essencial a cooperação administrativa internacional de órgãos, como a CGU, a CVM, o Cade e a RFB com os seus congêneres estrangeiros. Além disso, ajustes que permitem a cooperação direta entre Ministérios Públicos e autoridades centrais têm permitido um fluxo mais ágil de dados, de acordo com os limites legais de cada país.
Como investigar e responsabilizar grandes organizações sem parcerias internacionais?
É praticamente impossível responsabilizar organizações criminosas sem cooperação internacional. A jurisdição dos Estados é limitada pela soberania. E essa é limitada pelo território. A cooperação constrói pontes; derruba muros; atravessa obstáculos que seriam intransponíveis, sem confiança mútua e sem tratados. Esses grupos criminosos atuam em vários países de modo coordenado, utilizam jurisdições de conveniência para ocultar ativos e adotam estratégias sofisticadas de blindagem jurídica aqui e acolá. Sem acesso a informações bancárias, fiscais e documentais no exterior, e sem a possibilidade de ouvir testemunhas ou obter provas situadas em outros países, as investigações locais ficam limitadas ou estagnadas. O resultado é a impunidade, o que se traduz como desproteção das vítimas e enfraquecimento dos Estados. A responsabilização penal e cível, inclusive, com recuperação de ativos, depende de parcerias sólidas com autoridades estrangeiras.
Na Lava-Jato, a cooperação internacional foi uma ferramenta importante para obtenção de provas. Como você avalia o atual estágio dos acordos de cooperação internacional com o Brasil em matéria penal?
Antes da Lava-Jato, o MPF e a PF já tinham larga experiência na cooperação internacional. Esse cabedal sem dúvida facilitou o desenvolvimento da operação iniciada em Curitiba. Centenas de pedidos vindos do exterior foram cumpridos no Brasil mostrando a extensão do esquema de corrupção montado pela Odebrecht, que alcançou uma dezena de países. A Lava-Jato realçou a importância de uma cooperação rápida e direta com vários países, incluindo Suíça, Estados Unidos e Portugal. As pontes criadas com o exterior desde o fortalecimento do MPF em 1988 são duradouras. O desafio é institucionalizar os mecanismos de cooperação supranacional no Mercosul, e, com a aprovação do governo federal, fortalecer os laços do MPF com a Eurojust, no âmbito da União Europeia. O momento é apropriado para este passo tendo em vista a necessidade do governo federal de ampliar sua participação no enfrentamento da criminalidade organizada. Algumas facções criminosas brasileiras já se internacionalizaram. É preciso que o MPF e a PF operem transnacionalmente com força total.
O descrédito da Lava-Jato atrapalhou a evolução desses acordos em outras investigações?
É natural que a dimensão da Lava-Jato tenha causado no Brasil reações de proporções significativas. Faz parte do aprendizado institucional louvar os acertos e aproveitar os erros para torná-los lições aprendidas. Se o esquema Odebrecht exportou corrupção, a atuação do MPF e da PF exportaram estratégias anticorrupção que produziram resultados relevantes em cortes estrangeiras. A cooperação não pode se basear em "confiança cega", mas sim, numa confiança mútua construída com base na legalidade e no respeito aos direitos fundamentais. Não podemos deixar que essas garantias sejam abaladas e devemos preservar a credibilidade do país como parceiro confiável, célere e eficiente de cooperação internacional.
Quais são os aspectos positivos e negativos da globalização no combate à criminalidade?
Do lado positivo, a globalização permite maior integração entre órgãos de persecução penal, acesso mais rápido à informação, uso de tecnologias compartilhadas e desenvolvimento de redes internacionais para inteligência. Do lado negativo, facilita os fluxos de ativos ilícitos, a migração de criminosos, o uso de jurisdições secretas e a ocorrência de crimes digitais de difícil rastreamento. A globalização é uma via de mão dupla: facilita o crime, mas também a resposta estatal, desde que os Estados estejam dispostos a cooperar.
Qual a conclusão do seu livro?
A principal conclusão é que a cooperação penal internacional deixou de ser uma faculdade política dos Estados para se tornar um dever estatal de primeira ordem, especialmente na perspectiva da assistência ativa, em função das obrigações positivas de proteção da sociedade e de seus integrantes. A negativa injustificada de um pedido de auxílio pode configurar violação de tratados e até de normas de jus cogens. A falta de diligência ativa dos Estados também pode causar esse fenômeno. Para países como o Brasil, comprometidos com a ordem jurídica internacional e com a defesa do Estado de Direito, é imperativo construir uma cultura regional e global de cooperação, baseada na legalidade, na eficiência e no respeito aos direitos fundamentais. Para lidar com os males públicos globais, o caminho que devemos trilhar é o da solidariedade universal. Como costumo dizer, fora do multilateralismo não há salvação.