
Por Ivaldo Lemos Júnior* — A Justiça sempre passou uma impressão um tanto enigmática e inacessível, talvez até esotérica. Mesmo pessoas de dentro do aparelho judicial experimentam desconforto em nichos com os quais não estão familiarizadas ou se forem intim(id)adas para algum ato forense desconhecido. O avatar do magistrado é forjado com a marca da discrição, da sobriedade, da introspecção, e daí desbordam outras qualidades mais ou menos centimétricas: sabedoria e ponderação, pelo lado bom, ou arrogância e autoritarismo, pelo outro.
Tudo isso faz parte de um jogo dialético de aparências, de ilibação de condutas mais do que substancialmente de conteúdo moral. Quem conhece juízes na intimidade percebe que eles são indivíduos como quaisquer outros, e duas notas características de sua atividade pública - trabalho árduo e responsabilidade - nem de longe são apanágios exclusivos seus. A diferença entre as diversas ocupações diz respeito ao dever próprio de cada qual e também à maneira como é saboreado o poder que lhes é dado exercer: se com severidade exagerada ou com base "humana" e compassiva. Exemplo desse último é o juiz americano Frank Caprio: atencioso, avoengo, perdoador. Exemplo de juiz draconiano não falta, mas prefiro silenciar.
A missão do Judiciário, em linhas gerais, é simples: consiste em dirimir casos submetidos à sua apreciação, definir quem está certo ou errado, ou se ambos estão certos, ou ainda se ambos estão errados; se empates são êxitos de Pirro ou derrotas com sensação de alívio. Isso é feito em mais de uma frente. A mais comezinha é a dos fatos, que se resolve na administração das provas, ou seja, com as alegações das partes e os elementos trazidos para os autos a fim de agir no ânimo do julgador como um efervescente.
Nesse sentido, cada causa é única, pois os detalhes dos episódios pretéritos são peculiares, por mais sufocante que a rotina seja. Agora, observe esse fenômeno: se a epistemologia laboratorial dos feitos tem um potencial complicador praticamente infinito - e um dia cruzarão dois jogos de cartomantes, o de adivinhação do passado e o de adivinhação do futuro -, o que não dizer daquilo que pertence ao patrimônio do notório? Você não é daqueles que acham que o homem não esteve na Lua? O módulo, a bandeira fincada, a pegada no solo, as luzes, as estrelas, a frase canastrona do "grande passo para a humanidade" - tudo isso ocorreu mesmo ou foi uma farsa rasteira?
Outras tantas candidaturas poderiam se multiplicar pelo espaço sideral: Hitler fugiu para o Brasil, Elvis não morreu, aquecimento global etc. Colocar em dúvida essas coisas tem um lado excitante e malicioso de mexer com o imaginário e, afinal, nem tudo o que se consolida como verdade necessariamente aconteceu. Se, em séculos, nunca apareceu aspirante mais verídico a autor das peças e sonetos de Shakespeare, aquele a quem foram atribuídas continua sendo o menos inverossímil. Isso apenas empurra o assunto com a barriga. Existem janelas no castelo da história, mas é pela porta principal que passa um juízo prévio e particular de compreensão do invisível, disciplinado pela prudência de se evitar acreditar em tudo e não acreditar em nada.
Quanto à textura normativa, aí sim, os processos são seriados, porque se submetem aos ditames das mesmas leis. Aqui não há um castelo, e sim, uma tapera humílima: a lei é aplicada por quem não a elaborou e que pode achá-la motivo de sofrimento. Em linha de princípio, isso não deveria ter muita importância, pois o juiz não tem autoridade para rechaçar leis que desaprova, nem para fazer ajustes pontuais que, em sua meritória sensibilidade, qualificariam o desenvolvimento de seu munus.
É verdade que muitas leis já apodreceram e só não caíram do pé, ou que jamais frutificaram - "não pegaram", como diz o vulgo. É também verdade que há muitos momentos da vida vivida que não estão afivelados, ou que forçam o dono a se ajustar ao cinto. Claro que isso prejudica direitos em conflito. E nada garante que a Justiça não se torne ela própria motivo de degradação, em vez de libertação.
Procurador de Justiça do MPDF*
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