Visão do Direito

A integração das forças como pressuposto da segurança pública

"Nesse debate, só há uma verdade: iniciativas isoladas não serão capazes de frear o crescimento dos domínios das facções e milícias, que se expandem nas brechas da legalidade"

 Vicente Braga, presidente da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do DF (Anape), advogado, procurador do Estado do Ceará, doutor em direito processual civil pela USP e pós-doutor em direito público pela UERJ -  (crédito:  Divulgação )
Vicente Braga, presidente da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do DF (Anape), advogado, procurador do Estado do Ceará, doutor em direito processual civil pela USP e pós-doutor em direito público pela UERJ - (crédito: Divulgação )

Por Vicente Braga* — Entre os diversos desafios que se impõem ao Poder Público no Brasil, um chama a atenção neste momento em que o Congresso Nacional inicia a discussão da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública: o crime organizado torna-se cada vez mais sofisticado, diversificado e infiltrado em diferentes setores da economia, com uma influência que transcende as divisas do país e coloca em xeque a capacidade de reação do Estado.

Nesse debate, só há uma verdade: iniciativas isoladas não serão capazes de frear o crescimento dos domínios das facções e milícias, que se expandem nas brechas da legalidade, por meio de negócios formais e regulamentados.

Estimativas recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que somente os mercados ilícitos de combustíveis, bebidas, ouro e cigarros movimentam, todos os anos, algo em torno de R$ 146,8 bilhões no país. Apenas o ouro ilegal, entre 2015 e 2020, girou R$ 40 bilhões. Outro exemplo significativo é o do tabaco, com cerca de 40% do consumo oriundo do mercado ilícito, gerando prejuízos fiscais de R$ 94,4 bilhões na última década.

Tais números demonstram a gigantesca dimensão econômica do crime organizado, que, para além do varejo de drogas e armas, invade searas antes não vulneráveis, aproveitando-se justamente da baixa integração entre as forças de segurança. As fronteiras tornaram-se irrelevantes para facções e milícias, que empreendem operações transnacionais e estendem seus tentáculos sobre novas áreas. Também buscam ocupar um espaço institucional cada vez maior, seja pela via política ou pelo ingresso em carreiras de Estado.

O exemplo do setor de combustíveis é emblemático: a cada ano, 13 bilhões de litros circulam ilegalmente no Brasil — com perdas fiscais estimadas em R$ 23 bilhões. A atividade não apenas reduz a arrecadação pública, como também alimenta práticas delituosas distintas, como o abastecimento clandestino de garimpos ilegais, com impactos ambientais gravíssimos na Amazônia, no Cerrado e em outras regiões.

Em meio a esse cenário preocupante, fica claro que a resposta estatal não pode ser pulverizada ou episódica. É imprescindível um sistema de governança interinstitucional robusto, que envolva a Polícia Federal, a Receita Federal, o Ministério Público, o COAF e as agências reguladoras. Do contrário, os discursos protocolares jamais se converterão em ações concretas, coordenadas e permanentes.

As novas tecnologias revelam-se essenciais nesse processo, pois oferecem mecanismos eficazes de rastreamento e monitoramento de produtos — desde a origem até o consumidor final —, permitindo a real integração de informações tributárias, financeiras e de segurança pública. Essa abordagem fortalece o combate à lavagem de dinheiro e à evasão fiscal, promovendo a desarticulação de redes criminosas e de suas fontes de financiamento.

Além disso, é fundamental a presença efetiva do Estado em zonas fronteiriças, periferias e localidades sujeitas ao controle do poder paralelo. Apenas uma atuação permanente e sistematizada, que respeite a autonomia estadual, será capaz de retomar regiões hoje dominadas por facções e milícias.

Essa convergência institucional não implica a redução da independência entre os entes da federação, mas sim potencializa suas capacidades individuais, em um modelo que reconhece — e enfrenta com inteligência — a natureza complexa do crime organizado.

A PEC da Segurança Pública acerta, portanto, ao investir na padronização de procedimentos e na formação de bancos de dados criminais, facilitando a partilha de informações entre os entes federativos. Da mesma forma, o fortalecimento das guardas municipais e a criação de corregedorias autônomas tendem a garantir maior transparência e controle nas ações das forças de segurança, com uma abordagem mais orientada e eficiente.

O Brasil deve sentar-se à mesa com todos os players, para que União, Estados e municípios dividam responsabilidades e compartilhem competências, com protocolos claros e propósitos comuns. O inimigo é o mesmo — ele avança continuamente — e não será barrado senão por uma resposta unificada, precisa e implacável.

Presidente da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do DF (Anape), advogado, procurador do estado do Ceará*

Por Opinião
postado em 01/05/2025 08:16 / atualizado em 01/05/2025 08:16
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