
As múmias são comumente associadas ao Egito Antigo. No entanto, a prática da mumificação atravessa culturas e continentes, com diferentes povos desenvolvendo métodos específicos para preservar corpos. Uma dessas técnicas foi revelada recentemente por pesquisadores na Áustria, a partir da análise de uma múmia excepcionalmente bem conservada descoberta na cripta de uma igreja em uma vila alpina. O estudo foi publicado, nesta quinta (1º/5) na revista Frontiers in Medicine.
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Trata-se do corpo de Franz Xaver Sidler von Rosenegg, vigário paroquial que morreu em 1746. A equipe liderada pelo patologista Andreas Nerlich, da Ludwig-Maximilians-Universität (Munique, Alemanha), examinou o corpo utilizando tomografia computadorizada, autópsia localizada e datação por radiocarbono. Os exames revelaram que a parte superior do cadáver permanecia intacta, enquanto a região da cabeça e a parte inferior do corpo apresentavam sinais mais avançados de decomposição.
A maior surpresa veio da técnica utilizada para preservar o corpo. Pela primeira vez, foi documentado um caso em que a mumificação foi feita por meio da introdução de materiais diretamente pela cavidade anal, de acordo com Nerlich ao portal IFLScience.
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Durante o procedimento de investigação, os pesquisadores encontraram uma combinação de lascas de madeira de abetos, pedaços de galhos e tecidos como linho, cânhamo e outros materiais naturais – substâncias acessíveis e eficazes para a época do embalsamento. Tais elementos absorveram os fluidos do corpo pouco após a morte, contribuindo para o impressionante nível de preservação.
Esse método se diferencia radicalmente das práticas tradicionais de embalsamamento, em que o corpo é aberto para a retirada de órgãos e tratado com substâncias conservantes. No caso do vigário, os materiais foram inseridos internamente, numa abordagem que o próprio pesquisador comparou à preparação de um peru natalino.
Segundo Nerlich, a técnica rudimentar revelou-se surpreendentemente eficaz. O enchimento do abdômen e do tórax ajudou a preservar essas regiões, que de outra forma teriam se desfeito caso o corpo tivesse sido enterrado em solo comum. Numa situação assim, as lascas e tecidos poderiam até ter sido confundidos com resíduos externos ao corpo.
Outro detalhe intrigante foi a presença de uma pequena esfera de vidro, com perfurações em ambas as extremidades, localizada no abdômen. A peça pode ter sido parte de um adorno corporal ou ter se perdido no processo de preparação do cadáver. O artefato já havia sido identificado em 2000 por Bernhard X. Mayer, farmacologista da Universidade de Viena, durante um exame com raio-X portátil. Na época, o achado alimentou rumores de envenenamento, hipótese agora descartada por Nerlich e sua equipe.
O estudo atual esclareceu o método de embalsamamento e confirmou a identidade do corpo. Durante muito tempo, a múmia era conhecida apenas como o “capelão seco ao ar” em pesquisas anteriores. A análise determinou que o indivíduo morreu entre 35 e 45 anos, entre 1734 e 1780 – intervalo que coincide com a vida de Sidler.
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Outros detalhes também ajudaram a confirmar a identidade e o estilo de vida do vigário. Os restos revelaram uma dieta rica em grãos da Europa Central, produtos de origem animal e peixes. A ausência de sinais de esforço físico intenso sugere um estilo de vida sedentário, compatível com o de um religioso. Também foram encontradas evidências de tabagismo prolongado e de tuberculose pulmonar em estágio avançado.
Para Nerlich, o caso traz à tona possibilidades raramente documentadas na história da ciência. Há relatos históricos vagos sobre a preparação de corpos para transporte ou preservação, mas faltam descrições detalhadas. O pesquisador acredita que Sidler talvez estivesse destinado a ser levado à sua abadia natal, o que acabou não acontecendo por razões desconhecidas.
Além de registrar uma técnica inédita de mumificação, o estudo reforça a importância do uso de tecnologias avançadas na análise de restos humanos históricos. “A investigação de uma múmia bem preservada deve sempre — se possível — incluir uma investigação por tomografia computadorizada, já que a análise de raios X da múmia em 2000 não detectou o enchimento”, afirmou Nerlich ao IFLScience.
Casos como este mostram como sepultamentos antigos podem esconder práticas funerárias incomuns e oferecer pistas preciosas sobre os modos de vida e morte em outras épocas.