JUSTIÇA

Juíza é demitida por copiar decisões em mais de 2 mil processos no RS

Ministério Público entendeu que, durante estágio probatório, ex-magistrada pode ter incorrido em crimes relacionados a, entre outros, violação de direito autoral e inserção de dados falsos em sistema de informações 

Angélica foi afastada do cargo de juíza de direito em 2023 devido à apuração de
Angélica foi afastada do cargo de juíza de direito em 2023 devido à apuração de "possível prática de ilícitos criminais" - (crédito: 2541163/Pixabay )

Uma juíza foi demitida, no último dia 3 de julho, do cargo no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) por ter usado decisões idênticas em cerca de 2 mil processos para, supostamente, aumentar a produtividade. Angélica Chamon Layoun, de 39 anos, estava em estágio probatório na função, após ser empossada em 2022, quando o caso foi descoberto e passou a ser investigado, em setembro de 2023.  

Em nota à imprensa, a defesa da ex-magistrada, que atuava no município de Cachoeira do Sul, afirma que a pena imposta pelo órgão público é “desproporcional” e carece de “prova de dolo ou má-fé” — ou seja, não traz comprovação de que a servidora agia de forma intencional ou com o fim de prejudicar alguém ao praticar os atos.

De acordo com despachos disponíveis para consulta pública no site do TJRS, Angélica teve afastamento cautelar do cargo determinado em 2023 devido à apuração, por parte do órgão, de “possível prática de ilícitos criminais”. Conforme orientam o regimento interno do tribunal e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a situação foi apresentada ao Ministério Público e à Procuradoria Estadual. 

Em novembro daquele ano, o MP instaurou, com autorização do TJ, procedimento de investigação criminal contra a então juíza, por “entender possível” a existência de crimes relacionados a violação de direito autoral, falsidade ideológica, inserção de dados falsos em sistema de informações e violação de sigilo funcional — artigos 184, 299, 313-A e 325, § 1º, I, do Código Penal.  

Entre as redações das respectivas normas, encontram-se “reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual”; inserção, em documento público, de “declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita”; e “inserção de dados falsos” em sistemas ou “bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem ou para causar dano.  

Acrescenta o Código Penal: “Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assentamento de registro civil, aumenta-se a pena”. 

Embora o Procedimento Investigatório Criminal do Ministério Público eProcesso Administrativo Disciplinar do TJRS não estejam públicos, veículos de mídia que tiveram acesso aos documentos afirmam que Angélica teria copiado decisões em cerca de 2 mil processos a fim de aumentar a produtividade. Ela teria também desarquivado processos já julgados a fim de despachar sentenças iguais e computá-las como novos julgamentos. 

A demissão se deu devido ao fato de, no momento da investigação, a então magistrada estar em período de estágio probatório, pouco mais de um ano após ter sido empossada no cargo. A defesa da ex-funcionária, que “discorda da penalidade imposta pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul”, entrou com Pedido de Revisão Disciplinar no CNJ. 

Segundo os advogados, por ter sido designada a “vara cível que estava há anos sem juiz titular”, com muitos processos pendentes e “sem rotinas estruturadas”, a ex-juíza “buscou corrigir falhas operacionais e promover melhorias administrativas, enfrentando resistências internas que acabaram servindo de catalisador para o processo disciplinar”.  

Além dos citados desafios profissionais, a defesa menciona dificuldades pessoais, inclusive o cuidado para com um filho com transtorno do espectro autista (TEA), para justificar as atitudes da então servidora, que não teriam sido intencionais.  

“A conciliação entre os deveres funcionais e o cuidado com uma criança com necessidades especiais representa um desafio adicional que qualquer mãe magistrada pode compreender”, diz o comunicado. “Eventuais equívocos ou falhas operacionais, naturais em estágio probatório e agravados pelas dificuldades de adaptação a sistemas digitais complexos, não podem justificar o rigor da medida disciplinar aplicada. A Corregedoria-Geral de Justiça deveria ter priorizado medidas pedagógicas, especialmente quando não há má-fé, dano às partes ou violação da moralidade.” 

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Leia íntegra de nota da defesa de Angélica Chamon Layoun: 

A defesa da magistrada Angélica Chamon Layoun discorda da penalidade imposta pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por considerá-la desproporcional, juridicamente viciada e carente de prova de dolo ou má-fé, elementos indispensáveis à configuração de falta funcional gravíssima. 

Como não cabe recurso interno no TJRS, foi ajuizado Pedido de Revisão Disciplinar no CNJ, onde se discute a proporcionalidade da sanção e vícios de instrução do processo disciplinar. 

A jovem magistrada foi designada para uma vara cível que estava há anos sem juiz titular, com grande passivo processual e sem rotinas estruturadas. Nesse cenário, buscou corrigir falhas operacionais e promover melhorias administrativas, enfrentando resistências internas que acabaram servindo de catalisador para o processo disciplinar. 

Além dos desafios próprios de uma unidade desorganizada, a juíza enfrentou dificuldades adicionais por ser oriunda de outro estado, mulher e mãe de uma criança de três anos à época, diagnosticada com transtorno do espectro autista (TEA). A conciliação entre os deveres funcionais e o cuidado com uma criança com necessidades especiais representa um desafio adicional que qualquer mãe magistrada pode compreender. 

É importante esclarecer que o que a mídia vem reportando como "sentença" eram, em verdade, despachos que originalmente deveriam ser endereçados para o cartório ou MULTICOM, e não diretamente para os advogados, o que ocorreu por erro de um dos servidores da vara. 

Eventuais equívocos ou falhas operacionais, naturais em estágio probatório e agravados pelas dificuldades de adaptação a sistemas digitais complexos, não podem justificar o rigor da medida disciplinar aplicada. A Corregedoria-Geral de Justiça deveria ter priorizado medidas pedagógicas, especialmente quando não há má-fé, dano às partes ou violação da moralidade. 

A situação vivenciada pela magistrada Angélica poderia ocorrer com qualquer mulher que enfrente os desafios da dupla jornada profissional e maternal no exercício da magistratura. A defesa confia que o CNJ saberá avaliar o caso com isenção, garantindo o respeito ao devido processo legal e à proporcionalidade da sanção. 

postado em 14/07/2025 23:05
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