
Uma juíza foi demitida, no último dia 3 de julho, do cargo no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) por ter usado decisões idênticas em cerca de 2 mil processos para, supostamente, aumentar a produtividade. Angélica Chamon Layoun, de 39 anos, estava em estágio probatório na função, após ser empossada em 2022, quando o caso foi descoberto e passou a ser investigado, em setembro de 2023.
Em nota à imprensa, a defesa da ex-magistrada, que atuava no município de Cachoeira do Sul, afirma que a pena imposta pelo órgão público é “desproporcional” e carece de “prova de dolo ou má-fé” — ou seja, não traz comprovação de que a servidora agia de forma intencional ou com o fim de prejudicar alguém ao praticar os atos.
De acordo com despachos disponíveis para consulta pública no site do TJRS, Angélica teve afastamento cautelar do cargo determinado em 2023 devido à apuração, por parte do órgão, de “possível prática de ilícitos criminais”. Conforme orientam o regimento interno do tribunal e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a situação foi apresentada ao Ministério Público e à Procuradoria Estadual.
Em novembro daquele ano, o MP instaurou, com autorização do TJ, procedimento de investigação criminal contra a então juíza, por “entender possível” a existência de crimes relacionados a violação de direito autoral, falsidade ideológica, inserção de dados falsos em sistema de informações e violação de sigilo funcional — artigos 184, 299, 313-A e 325, § 1º, I, do Código Penal.
Entre as redações das respectivas normas, encontram-se “reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual”; inserção, em documento público, de “declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita”; e “inserção de dados falsos” em sistemas ou “bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem ou para causar dano”.
Acrescenta o Código Penal: “Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assentamento de registro civil, aumenta-se a pena”.
Embora o Procedimento Investigatório Criminal do Ministério Público e o Processo Administrativo Disciplinar do TJRS não estejam públicos, veículos de mídia que tiveram acesso aos documentos afirmam que Angélica teria copiado decisões em cerca de 2 mil processos a fim de aumentar a produtividade. Ela teria também desarquivado processos já julgados a fim de despachar sentenças iguais e computá-las como novos julgamentos.
A demissão se deu devido ao fato de, no momento da investigação, a então magistrada estar em período de estágio probatório, pouco mais de um ano após ter sido empossada no cargo. A defesa da ex-funcionária, que “discorda da penalidade imposta pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul”, entrou com Pedido de Revisão Disciplinar no CNJ.
Segundo os advogados, por ter sido designada a “vara cível que estava há anos sem juiz titular”, com muitos processos pendentes e “sem rotinas estruturadas”, a ex-juíza “buscou corrigir falhas operacionais e promover melhorias administrativas, enfrentando resistências internas que acabaram servindo de catalisador para o processo disciplinar”.
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Além dos citados desafios profissionais, a defesa menciona dificuldades pessoais, inclusive o cuidado para com um filho com transtorno do espectro autista (TEA), para justificar as atitudes da então servidora, que não teriam sido intencionais.
“A conciliação entre os deveres funcionais e o cuidado com uma criança com necessidades especiais representa um desafio adicional que qualquer mãe magistrada pode compreender”, diz o comunicado. “Eventuais equívocos ou falhas operacionais, naturais em estágio probatório e agravados pelas dificuldades de adaptação a sistemas digitais complexos, não podem justificar o rigor da medida disciplinar aplicada. A Corregedoria-Geral de Justiça deveria ter priorizado medidas pedagógicas, especialmente quando não há má-fé, dano às partes ou violação da moralidade.”
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Leia íntegra de nota da defesa de Angélica Chamon Layoun:
“A defesa da magistrada Angélica Chamon Layoun discorda da penalidade imposta pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por considerá-la desproporcional, juridicamente viciada e carente de prova de dolo ou má-fé, elementos indispensáveis à configuração de falta funcional gravíssima.
Como não cabe recurso interno no TJRS, foi ajuizado Pedido de Revisão Disciplinar no CNJ, onde se discute a proporcionalidade da sanção e vícios de instrução do processo disciplinar.
A jovem magistrada foi designada para uma vara cível que estava há anos sem juiz titular, com grande passivo processual e sem rotinas estruturadas. Nesse cenário, buscou corrigir falhas operacionais e promover melhorias administrativas, enfrentando resistências internas que acabaram servindo de catalisador para o processo disciplinar.
Além dos desafios próprios de uma unidade desorganizada, a juíza enfrentou dificuldades adicionais por ser oriunda de outro estado, mulher e mãe de uma criança de três anos à época, diagnosticada com transtorno do espectro autista (TEA). A conciliação entre os deveres funcionais e o cuidado com uma criança com necessidades especiais representa um desafio adicional que qualquer mãe magistrada pode compreender.
É importante esclarecer que o que a mídia vem reportando como "sentença" eram, em verdade, despachos que originalmente deveriam ser endereçados para o cartório ou MULTICOM, e não diretamente para os advogados, o que ocorreu por erro de um dos servidores da vara.
Eventuais equívocos ou falhas operacionais, naturais em estágio probatório e agravados pelas dificuldades de adaptação a sistemas digitais complexos, não podem justificar o rigor da medida disciplinar aplicada. A Corregedoria-Geral de Justiça deveria ter priorizado medidas pedagógicas, especialmente quando não há má-fé, dano às partes ou violação da moralidade.
A situação vivenciada pela magistrada Angélica poderia ocorrer com qualquer mulher que enfrente os desafios da dupla jornada profissional e maternal no exercício da magistratura. A defesa confia que o CNJ saberá avaliar o caso com isenção, garantindo o respeito ao devido processo legal e à proporcionalidade da sanção.”
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